Revirando velhos papéis em casa, encontrei a segunda página de uma reportagem que saiu na revista IstoÉ no dia 6 de novembro de 1996 sobre o madeireiro Hilton Grecco que me impressionou. De vez em quanto eu fazia limpeza nestes papéis velhos, mas sempre poupei as duas folhas da revista. A primeira página desapareceu, não sei quando, mas a segunda estava lá com a foto do velho madeireiro num campo devastado segurando um pedaço de madeira no ombro com uma mão e a outra no bolso. Parece sereno. Até orgulhoso. À época Grecco foi considerado o sujeito que mais árvores derrubou no mundo. Um devastador de florestas, embora sua expressão facial fosse de um homem bom.

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Recordo a naturalidade com que ele falava das florestas. Ele a tratava como inimigas: “A floresta é um lugar hostil para o ser humano, ela se defende das ameaças com cobras, morcegos, cipós e picadas de mosquitos dos mais variados tipos”. Uma vez ele levou uma picada no tornozelo de uma jararaca de rabo branco e ficou inconsciente por duas horas e quando acordou o seu cabelo que era negro, tinha ficado branco. Ele se afastou do trabalho por dois meses. Eram histórias assustadoras e fascinantes e à época ele colecionava o título nada honroso de inimigo número 1 dos ecologistas. Grecco era uma espécie de pirata do final do século 20, capaz de dizer com um sorriso frases que a muitos chocariam e seriam chamadas de abomináveis: “Vamos deixar de hipocrisia. A Amazônia é uma velha com árvores de 500 anos. Muitas delas dominantes”.

Ela tinha um método: “Para fazer direito o trabalho, você precisa matar as árvores dominantes. Mas quero deixar claro que na floresta nunca matei o que não fosse vegetal. Não me acho um sanguinário como os homens de um abatedouro. É diferente. As árvores não berram como os bois na hora do abate”. Toda esta convicção não o impediu uma vez depois de tomar um porre de vinho de jatobá de acordar no meio da noite e sair caminhando pela floresta: “As árvores tinham bocas enormes, que berravam: você vai me derrubar, você vai me derrubar”. O álcool libera os demônios internos. Grecco derrubou florestas na África e em outros lugares do mundo. Era um especialista.

Em Tucuruí, no Pará, ele comandou um exército de 484 homens empunhando 220 motosserras. “Parecia o apocalipse”, disse entre um pedaço de culpa e uma ponta de prazer. Em 151 dias ele eliminou uma floresta de 5.150 hectares. No sul do Pará, ele entrou na floresta com um punhado de bombas incendiárias nas mãos para abrir pastagens numa fazenda de 140 mil hectares da Volksvagen: “Parecia o inferno na terra”. Hilton Grecco se aposentou em 1996. Não porque se cansou de derrubar árvores pelo mundo afora. Mas porque a mulher Arlete, mãe de seus três filhos e avó de seus sete netos, pediu. Não aguentava mais ver o marido andarilho sair pelo mundo para exterminar florestas. “Já cheguei a ficar dois anos e meio morando no meio do mato”, disse Grecco.

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Eu recordo que me impressionei ao leri a reportagem de apenas duas páginas na revista há dezoito anos, tanto que a guardei todos estes anos. Uma das páginas se foi, mas a que ficou ainda hoje me impressiona. Grecco diz que três tipos de homens vão para a floresta: “Os destemidos, os proscritos e os que fogem de si mesmos”. Ele achava que tinha um pouco de cada. Não sei se Grecco ainda está vivo, provavelmente não. Ele morava no Espírito Santo. À época ele disse que preferia a floresta à civilização, o que considerei um paradoxo. E que estava convencido de que “a madeira redime o homem”. Aliás, esta foi a última frase da reportagem. Eu dobrei o papel, guardei na gaveta e fiquei pensando. Se a madeira redime o homem e homens como Grecco exterminaram as florestas, isto significa que em um mundo sem floresta, o homem não terá redenção. O que faz sentido. As árvores não berram como os bois na hora do abate, talvez porque os seus espíritos, se é que elas os têm, sabem que podem viver sem os homens. Mas os homens não sobrevivem muito tempo sem as árvores. O aumento da temperatura no planeta está aí para comprovar. É tudo uma questão de tempo.