Nunca vi tantas pessoas felizes no ônibus quanto ontem de manhã. Senhoras falantes, motorista atencioso, uma festa. Havia greve de cobradores, mas os ônibus estavam transportando passageiros sem cobrar. Os motoristas pareciam mais felizes que os passageiros por aplicarem uma punição aos patrões no órgão mais sensível de toda pessoa: o bolso. “Eles só pensam neles. Querem ganhar e na hora de pagar 70 reais a mais endurecem a parada”, disse o motorista do ônibus que peguei. Os passageiros estavam felizes com o fato de não pagar passagem e também pelo atendimento personalizado que os motoristas que foram trabalhar dispensavam à população. Estavam mais atenciosos, falantes e relaxados.

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Tinha passageiro bem humorado sugerindo que a experiência de ontem na cidade foi um sucesso e que seria melhor o serviço continuar daquele jeito: gratuito e atencioso, com todo mundo feliz. Mas, como se sabe, hoje ou no máximo amanhã, volta tudo ao normal. O mundo não é perfeito. Eu desci do ônibus na Praça Tiradentes. Estava um dia bonito de inverno. Este inverno de Curitiba que tem cara de primavera enquanto o outono tem cara de inverno. Desci pela Rua Monsenhor Celso e na Rua XV encontrei um grupo numeroso de argelinos. Estavam com camisetas brancas e bermudas verdes e carregavam bandeiras da Argélia desfraldadas sobre a cabeça. Parecia gente simpática. E todos tinham caras de argelinos. Quando a gente diz cara de argelino, se refere de uma forma genérica ao árabe do Norte da África. Claro que se o sujeito estivesse com bandeira do Egito, eu diria que ele teria cara de egípcio.

Eu fui em frente. Atravessei a Rua Marechal Deodoro e entrei na Galeria Suissa pensando que não encontrei nenhum grupo de torcedores russos. Era perto do meio-dia. Um homem encostado na porta de uma loja me olhou e veio na minha direção. Ele perguntou em inglês. “Are you Russian?”. Eu disse “no”, com medo de o cara espichar a conversa em inglês e eu me complicar. Ele emendou: “You have the Russian’s face”. Eu entendi o que ele queria dizer. Que eu tinha cara de russo. No entanto, mais uma vez fiquei no arroz macrobiótico com feijão, com medo de ele esticar o papo. “Oh, yes!”, respondi sem saber o que eu queria realmente dizer com aquilo. Para meu alivio o cara mudou para o português. Resumindo, era brasileiro.

Ele foi dizendo na maior camaradagem: “Eu tenho uma loja de produtos médicos e hoje de manhã entrou um casal de russos. Era um homem baixinho e uma mulher baixinha”. O homem disse que o baixinho se apresentou em inglês, dizendo que era russo e que estava interessado em comprar produtos médicos. Eu não perguntei que produtos eram porque o homem estava mais interessado em falar da aparência dos dois russos: “Eu fiquei decepcionado! Eles não tinham cara de russos. Era um sujeito meio moreno, com cara de brasileiro. Eu não acreditei que era russo e pedi para ver os documentos. Ele me mostrou e estava lá em cirílico e em inglês o nome do sujeito e a fotografia dele. Ele era russo”, disse o homem da Galeria Suissa, revelando decepção.

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Ele ficou parado na minha frente. Ele riu e disse como fosse algo espantoso: “Acredite, você tem cara de russo, meu chapa! Mais cara de russo que muito russo por aí. É até uma pena você não ser russo”. Eu fiquei desconcertado, não sabia o que dizer. Afinal, ter cara de russo não acrescenta nada no currículo e também não manda ninguém para a cadeia. Ou seja, não resolve nada. Eu não sabia o que fazer e ainda bem que uma senhora deixou a loja, se aproximou do homem da Galeria Suissa e os dois foram embora abraçados. Da mesma forma que apareceu na minha frente perguntando em inglês se eu era russo, ele desapareceu. Eu fui andando pela Galeria Suissa, lamentando que não pudesse usar a minha cara de russo para uma coisa boa ou útil. Cheguei até cogitar uma ou duas possibilidades, como entrar para o cinema ou abrir um consulado da Rússia. Mas desisti: acho que não ia dar certo.