Alguns apertos na vida não vêm sós. Parecem tsunamis. Uma onda forte seguida de outras que vão derrubando tudo. Foi o que aconteceu a Glauter Goulart. A coisa começou quando o cachorro Ariosto morreu. Glauter sofreu. Até aí, tudo bem. O cão morreu de velhice numa madrugada durante o sono. Faz parte da vida. Quando se recuperava da perda de Ariosto, Glauter foi despedido no emprego. Aí apertou, porque emprego é fundamental, principalmente se o sujeito não é rico ou não arrumou uma sinecura. Quando o sujeito perde o emprego ele fica desorientado, bate depressão e complexo de “onde eu errei”. E bate insegurança financeira. Glauter não errou. Foi contenção de despesas. O patrão disse que precisava cortar na carne e cortou na carne de Glauter.

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Problema é que o mercado de trabalho anda feio. Nova colocação em ambiente de retração econômica é difícil. Duas semanas depois, o contrato de aluguel venceu e a dona do apartamento em que Glauter morava há cinco anos pediu o imóvel para a filha que mudou de São Paulo para Curitiba – Glauter tinha tempo para desocupar o imóvel, mas era mais um problema. Ainda mais que locação está cara e alugar alguma coisa desempregado é dureza. Os avalistas desaparecem. Nestas horas é preciso serenidade e apoio. Ele foi buscar apoio na namorada Wanda Batista que é ortopedista. Glauter chamou a garota para jantar em casa que fora ficava caro. Ele queria botar a cabeça em ordem. Na correria, fazia alguns dias que não se viam.

Wanda chegou nervosa e irritada, parecia que foi ela quem perdeu o cachorro, o emprego e tinha que correr do apartamento para achar outro. O clima no jantar era de velório. Ele falava e ela estava dispersa. Ele perguntou: “Você está me ouvindo?”. A impressão era de Wanda estar com a cabeça em outro mundo embora as mãos estivessem sobre a mesa se retorcendo a todo instante. Glauter percebeu que a conversa não ia evoluir. Ele precisava de calma e cabeça no lugar. E teve: “Querida, está acontecendo alguma coisa? Quero dizer, com você”. Wanda disse que estava. E desabou num choro inesperado. Glauter sentiu arrepio que foi parar na vértebra número 33. Ele engoliu saliva amarga que parou no fundo do estômago como Titanic ácido e despedaçado. E pensou: “Putz! O que será agora?”.

Wanda contou que depois de Ariosto morrer e antes de Glauter ser despedido, ela conheceu Waldomiro: “Não sei o que aconteceu. Foi de repente. Paixão à primeira vista”. Ela tentou avisar o namorado que nesta altura sem saber já era ex-namorado, mas ele foi despedido e ela achou o momento impróprio para comunicar. Quando ele tentava colocar cabeça em ordem, aconteceu o negócio do apartamento. Mas como as coisas se precipitaram e ela estava anunciando que eles não tinham mais nada em comum. Ela estava em outra. Glauter ficou em silêncio e pensou com os botões: “Rapaz, isto é café pequeno perto do que o coitado do Jó passou na terra de Uz. E ele sobreviveu”. Claro que não dava para comparar as duas situações. Mas lembrar de Jó foi bom para Glauter se sentir aliviado.

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Ele respirou fundo, encarou Wanda e disse altivo embora triste: “Tudo bem, querida. Foi bom enquanto durou”. Ele disse aquilo sem demonstrar abalo. Ficou até orgulhoso. Wanda olhou para ele como quem quisesse dizer que ainda tinha mais. Glauter perguntou: “Tem mais alguma coisa?”. A pergunta era sem sentido. Se ela estivesse grávida, não seria dele, mas de Waldomiro. Wanda disse: “Ele é ciumento”. Glauter pensou que não podia fazer nada – não ia apagar o passado e muito menos sair correndo da cidade porque Waldomiro era ciumento. “Ele não se conforma que você tem a nossa tatuagem no braço”, disse Wanda. Ele lembrou que gravou no braço esquerdo, perto do coração: “One life. One love”. Ela implorou: “A minha eu já apaguei. Será que você não pode apagar a sua, por favor?”. A tatuagem era o menor dos problemas de Glauter. Wanda disse: “Ele anda nervoso com a tatuagem. Além disso, está armado e disse que é capaz de fazer uma bobagem”. Era o que faltava naquele tsunami. A tatuagem virou o principal problema de Glauter.