A conversa começou por causa do trânsito. “Tem muitos carros nas ruas. Não sei onde isso vai parar”, disse Salviano. “E para piorar, as pessoas estão dirigindo cada vez pior, estão cada vez mais ignorantes e estão cada vez mais com pressa”, acrescentou com a experiência de quem trabalha há trinta anos de motorista de táxi nas ruas de Curitiba. Eu já tive esta conversa mais de cem vezes com motoristas de táxi. Ela é mais comum que namorado dizer para a namorada: “Você está muito bonita hoje, meu bem!”. Não tem como escapar. Por isso eu disse: “Você tem razão, Salviano”. Ele se animou: “E não me venham dizer que o metrô é a solução, porque eu te digo uma coisa: não é mesmo!”.

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Eu ainda estava frio na conversa. Espichei por espichar. “E por que não, Salviano?”. Ele respondeu como grande especialista no assunto: “Por causa do solo de Curitiba. O subterrâneo de Curitiba é cheio de pequenos rios subterrâneos”. Eu já ouvi esta conversa antes. E, pior, eu já vi isto perto do Rio Belém, na ciclovia. A prefeitura tentou várias vezes conter os deslocamentos de terra, que fazem a ciclovia virar maquete de rodovia na Califórnia atingida por terremoto, toda torta. E não dá certo fazer muro de contenção porque se não canalizar os pequenos rios subterrâneos, o problema volta. Por isso eu disse: “Você não está sozinho nesta teoria. O arquiteto Lolo Cornelsen, que é uma autoridade no assunto, diz a mesma coisa. Ele acha um risco danado fazer metrô com o terreno poroso de Curitiba”.

Aquilo foi sopa no mel. Salviano se achou num grau semelhante ou ainda maior que o de Lolo Cornelsen. E sentiu necessidade de explicar porque sabia mais. “Veja o caso da Praça Osório, poucas pessoas sabem que passa um rio ali por baixo”, disse ele. Sinceramente, eu acho que muita gente sabe que passa um rio ali por baixo, porque o rio pode ser visto bem perto dali, na Avenida Visconde de Nacar. Mas tudo bem. Eu disse que ele tinha razão. A conversa mixou. Salviano me olhou. Ele parecia pronto a dizer algo especial. E disse: “Não espalhe. Para não criar pânico. Mas um dia vai acontecer com Curitiba o que aconteceu com aquele continente romano que o mar engoliu”.

Eu olhei para ele. Ele balançou a cabeça como tivesse me feito a maior revelação de todos os tempos. Sério e furioso. Eu perguntei: “Você quer dizer a Atlântida?” “Este mesmo”, disse ele. E perguntou: “Ficava em Roma, esta coisa, não ficava?”. Eu disse que ficava perto de Roma, embora até hoje ninguém saiba exatamente onde ficava a Atlântida. A maioria dos especialistas, que sabem um pouco mais que Salviano, diz que ficava no Oceano Atlântico. Como ninguém tem certeza, eu deixei a coisa perto de Roma. Ainda faltava um terço do percurso para eu chegar em casa. A conversa não podia morrer, pois caso contrário Salviano poderia se sentir tentado a contar uma coisa ainda mais assustadora.

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Por isso eu perguntei: “Você acha que corremos este risco?”. Ele respondeu: “Rapaz, embaixo de nós tem a maior reserva de água do planeta. Sabia? Começa aqui e vai até o Chile. É muita água. Com esse monte de prédio, esse monte de carro, esse solo que é de areia molhada, é só botar mais um pouco de peso em cima que afunda tudo. E a gente vai virar uma cidade perdida no fundo do mar. E a Praça Osório vai ser a primeira a ir para o buraco”. Acho que ele falava do Aquífero Karst – ou será Guarani? A ideia de Curitiba virar uma cidade mitológica no fundo do mar me deixou fascinado, principalmente se acontecer depois que eu morrer. Por enquanto, vamos deixar do jeito que está. Eu não tenho pressa.

Mas eu pensei duas coisas: primeira, como ela ia parar no fundo do mar, se o mar fica lá pelas bandas de Paranaguá? Segunda, porque cargas d’água Curitiba tem que afundar, se este mundo de água embaixo da cidade vai até o Chile? Santiago, Assunção, Córdoba, todas estas cidades vão escapar, e só Curitiba vai se ferrar? Não é justo. Mas eu não perguntei nada. Por que, se seu perguntasse, Salviano tinha resposta. E tenho certeza de qu,e ela seria ainda mais assustadora. E para meu alivio, a viagem chegou ao fim.

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