O mundo é fantástico. Há uma profusão de coisas para se admirar. Os seres vivos, cada um com a sua engenharia, seus ambientes peculiares e seus modos de vida distintos. Além disso, existe a exuberância vegetal das florestas, os riachos nas florestas virgens, quando existia virgindade nas florestas. Eu vi alguma coisa disto e posso dizer o quanto é fantástico. Sem contar os oceanos, o céu, as estrelas. Mas não há coisa mais incrível e fascinante que o mundo dos sonhos. Porque nele tudo é possível. Na madrugada de ontem, por exemplo, noite quente, acordei suado de um sonho. Não foi pesadelo. Nos pesadelos, até em noites frias, a gente acorda suado e assustado. O suor foi por conta do calor. E o sonho talvez até seja pelo mesmo motivo. No entanto, quando acordei, eu murmurei: “Não acredito!”.

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Eu tinha acabado de sonhar com a Clarice Lispector. E mais: ela estava deixando a presidência do Clube Atlético Paranaense, porque terminou o mandato e foi morar em seu sítio em Prudentópolis. Esta é a parte do sonho que até tem um pé na realidade. Clarice foi terceira filha de Pinkhas Lispector e de Mania Krimgold e nasceu em 10 de dezembro de 1920 na vila de Chechelnyk, na Ucrânia, enquanto seus pais percorriam várias aldeias do país fugindo da perseguição aos judeus durante a  Guerra Civil Russa de 1918-1920, guerra que se seguiu à Revolução Comunista de outubro de 1917. Ela e a família chegaram ao Brasil quando Clarice tinha um ano e dois meses de idade. Ela sempre dizia que não tinha nenhuma ligação com a Ucrânia e sim com o Brasil. Em Prudentópolis encontram-se os dois: a Ucrânia e o Brasil.

Prudentópolis é o município brasileiro mais ucraniano do país, 80 por cento da população descendem de imigrantes. A imigração começou justamente na década de 1920, quando os familiares de Clarice vieram para o Brasil. Eles, no entanto, foram para Pernambuco. Mas, no sonho, Clarice veio morar no Paraná e tinha aquele sítio, que ficava perto de uma de uma cachoeira. Prudentópolis tem mais de 100 cachoeiras. E a cena da cachoeira foi a última do sonho. Clarice virou a cabeça e me olhou. Usava camisa branca fina, calça branca e o seu chapéu Panamá branco caiu da cabeça no chão. Eu estava em pé, ela sentada numa pedra. Eu abaixei, peguei e entreguei para ela. Ela deu um sorriso triste, pegou o chapéu e virou a cabeça.

No sonho era evidente que ela foi presidente do Atlético. Não sei como foi a gestão. Se o Atlético foi campeão ou não. E também não sei em que época. Não foi coisa recente. No sonho ela tão atleticana quanto na realidade foi escritora. Era silenciosa e enigmática quanto a imagem que deixou. Mas o detalhe mais misterioso do sonho eram os chapéus Panamá. Ela tinha vários deles e um segundo eu peguei porque ele caiu no vão da arquibancada de madeira do velho estádio Joaquim Américo. Eu vi jogos no estádio, mas não me lembro – se fosse apostar eu diria não – se as suas arquibancadas tinham vãos, por onde poderiam cair chapéus Panamá. Teve um terceiro chapéu Panamá que ela usava quando passeava pela Rua XV de Novembro, que ainda não era Rua das Flores. Mas este não caiu.

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Outro detalhe era a cigarrilha longa de marfim na ponta da qual ela encaixava o cigarro. Este talvez seja o mais real detalhe de Clarice Lispector no sonho. Ela fumava. Mas não cigarrilha de melindrosa. Foi um sonho rápido e cheio de detalhes. Os sonhos têm isso, são rápidos, intensos e muitas vezes sem sentido. Mas achei fascinante e resolvi registrar. Quando a gente acorda tenta entender o sonho. Se alguém me perguntar de onde veio este eu diria que talvez seja resultado inconsciente de algumas pesquisas que andei fazendo sobre o Atlético na Biblioteca Pública do Paraná no fim de semana. Mas como a Clarice Lispector foi entrar na história, isto, sinceramente, não tenho a menor ideia. Não apareceu um jogo de futebol, uma bola rolando, nada, só Clarice Lispector de roupa branca, piteira, seus chapéus Panamá, a cachoeira de Prudentópolis e a arquibancada do Joaquim Américo. E não havia d,úvida. Ela foi presidente do rubro-negro.