O telefone toca logo de manhã. “Aqui é a Nancy. A Nancy do e-mail”, disse a voz agradável de mulher, voz suave e calma. Eu me lembrei na hora. Nancy da Silva é leitora e vez e outra manda e-mail dizendo que gostou de algo. Nunca escreveu dizendo que não gostou o que me levou a concluir que quando não gosta prefere não dizer nada. Ela me perguntou se podia me contar uma história pessoal. Mas advertiu: “É meio longa”. Quando falou que era longa, fiquei frio. Não ia ser fácil. Mas não ia dizer não. Foi com certa amargura que falei: “Claro, tudo bem, pode falar!”. A história ficou longa porque Nancy misturou seu drama atual com uma história de família que parecia encerrada e ela descobriu que não era bem assim.

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O caso é o seguinte: Nancy está comprando apartamento e seu nome aparece como dona de propriedade, parte apenas, depois do inventário do pai que morreu. É a casa em que mora a sua mãe em Santa Felicidade. Este detalhe, se eu entendi bem, está dificultando o acesso ao financiamento do imóvel que ela tenta comprar e transforma a sua vida num martírio sem fim. “Uma novela”, disse. Sem contar que para levantar a maior parte do dinheiro para comprar o novo apartamento, ela vendeu o antigo, que tinha com Eduardo, o ex-marido, que ficou com a metade. A venda foi uma novela interminável e para ser concretizada ela voltou a falar com o ex-marido depois de oito anos.

Agora a nova novela era a compra do apartamento, para se livrar do aluguel. E, aí, surgiu outra novela. “O nome de meu pai era Orlando Silva. Você sabe por quê?”, perguntou. Deduzi que era por causa do cantor. Ela concordou: “Exato”. “Mas o nome dele era para ser Octávio Marcondes Alencar de Castro Junior”, disse, num tom solene. Fiquei ouvindo e ela contando. O pai de Nancy era filho único. Mas os pais tiveram uma filha antes dele. “Houve uma tia minha que era muito bonita. O nome dela era Greta Garbo Marcondes Alencar de Castro. Greta Garbo por causa da Greta Garbo, entendeu?”, perguntou. Entendi e não era preciso ser esperto para entender. “Mas Greta Garbo morreu de tifo aos dezesseis anos em 1943, antes de meu pai nascer, em 1944”, contou.

A morte de Greta Garbo provocou duas consequências na família: o avô de Nancy, o velho Octávio, ficou amargurado e abandonou a mulher, Dona Antonieta. Ele fugiu para Ponta Grossa com a enfermeira do hospital, uma loira alemã chamada Ingrid Schneider, que era comunista e fugiu do nazismo. A avó de Nancy estava grávida quando isto aconteceu. Ela desconfia que ele conheceu Ingrid quando Greta Garbo estava no hospital. Dona Antonieta ficou tão revoltada que o filho ao nascer ficou sem os nomes paternos. E de pirraça, ela botou o do cantor de quem Octávio não gostava. “Minha mãe ficou em situação difícil, mas meu tio Gumercindo a ajudou a educar a criança. Meu pai sempre considerou meu tio o pai verdadeiro”, contou Nancy.

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Nancy viu o avô uma vez. “Foi quando meu pai me apontou na Rua XV um velho e disse: Olha só uma pomba no fio de luz”. O velho atravessou a rua ao encontro deles. “A imagem que tenho dele é a de um senhor alto, magro e meio falastrão, dizendo que ganhava o mesmo salário que o presidente da República”, contou. “Ele me chamou num canto pra me dar uma nota vermelha, acho que daquelas do Castelo Branco. Parece que foi 5 mil cruzeiros”, acrescentou Nancy. “Depois que ele foi embora meu pai disse que era mixaria porque ele ganhava muito como militar aposentado”, disse. Esta novela cheia de dores e abandonos ficou no passado até ontem.

Nancy disse: “Agora, um sujeito me ligou dizendo que precisa de minha assinatura porque tenho direito nuns precatórios que valem até os netos de meu avô. Pelo que entendi, com este dinheiro eu posso completar a grana do apartamento que estou comprando. Eu fiquei estarrecida”. Mas ao mesmo tempo também ficou desanimada: “Estou vendo abrir na minha frente mais uma novela cheia de capítulos intermináveis, abrindo velhas feridas, muitas das quais eu nem conheço”. Eu pensei que ela fosse perguntar: “O que eu faço?”. Mas ela disse: “A vida é um folhetim”. Esta a história que ela queria me contar.

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