A longa e virtuosa vida de Tião Pé na Cova

Estava conversando ontem à noite na internet com Jaiminho Marlon Brando, que tem este nome porque uma vez, há muito tempo, disse meio distraído e faceiro: “Eu tenho um rosto tão bonito e tenho tanto talento que se morasse nos Estados Unidos seria um novo Marlon Brando”. Ninguém sabe se falou sério, mas ninguém fala isso sem levar troco. Sempre tem um gaiato de alerta e rápido no gatilho. Madalena, que apesar do nome era homem e ninguém debochava porque tinha um metro e noventa e braço que batia mais forte que marreta de borracheiro, grudou o apelido de Jaiminho Marlon Brando. Que ficou. Jaiminho virou Marlon Brando apesar de não nascer em Omaha, Nebraska, e de não ter feito nenhum filme em Paris que ajudou a difundir as virtudes lubrificantes da manteiga em atividades de natureza erótica.

Como disse, estava falando com Jaiminho Marlon Brando. E na internet a conversa parece folha seca, voa em todas as direções. E se a gente beberica um vinho ou uma cerveja gelada, então vai se lembrando de coisa que pagaria para esquecer. O que não foi o caso. A gente se lembrou de um sujeito bacana que a gente conheceu. Um veterano que cuidava do setor de telex e máquinas de teletipo e telefotos da redação. O sujeito em questão era o Tião Pé na Cova. Que era Sebastião na certidão de nascimento, Bastião para a mulher e Tião para os amigos. E virou Pé na Cova numa greve. Foi um episódio momentoso de nossas vidas, a greve, tensa, difícil, todo mundo com os nervos à flor da pele, quando o nosso líder – não existe greve sem líder, assim como não existe greve sem grevista – conclamou cada um de nós a dar a sua opinião, antes de tomarmos coletivamente uma decisão definitiva: continuar ou não com a greve.

Tinha gente que pagava para não falar e tinha gente que pagava para falar demais. Tião, por ele, ficaria invisível. Mas como tinha que falar, falou. Na realidade, gemeu. Disse que não furava a greve porque ia perder os amigos com os quais depois do trabalho ia para o boteco terminar a noite entre conversa e cerveja gelada, disse que gostava dos patrões, que também eram seus amigos, e se fosse por ele nem teria greve para ele não ficar naquele impasse que só fazia mal para o coração. E foi aí que todo mundo lembrou que tinha mais essa. Sebastião tinha um problema cardíaco. Era uma válvula que andava batendo biela. Ele sempre ia ao médico e achava que ia morrer em breve. Tião foi falando: “Eu não queria ninguém de cara virada comigo. Eu estou com vocês, mas não gostaria de ver ninguém magoado comigo porque, como vocês sabem, eu já estou com o pé na cova”.

Todo mundo ficou comovido com tamanha sinceridade. Tião abriu o seu coração. E todo mundo entendeu a posição dele que no final das contas não desafinou nem de um lado e nem de outro. Terminou a greve, todo mundo voltou a trabalhar e Roberto Marginal, que era da pesada, mas continuou com o apelido de Marginal mesmo depois de virar evangélico, grudou o apelido de Pé na Cova em Tião. Tião Pé na Cova. Ou, simplesmente, Pé na Cova. O mais engraçado é que Tião Pé na Cova viveu ainda por muito tempo com aquele coração batendo biela e assustando-o de vez em quando. Até que um dia, finalmente, realmente botou o pé e todo o resto do corpo na cova. E quando isto aconteceu Marginal radicalizou a sua conversão. Ele ficava lendo a bíblia o dia inteiro, às vezes em voz alta. E pegou o péssimo hábito de ameaçar os amigos, dizendo que iam para o inferno se também não se convertessem a uma seita pentecostal que tinha no bairro dele.

A gente foi se lembrando de todas estas coisas em nossa conversa, até que o vinho acabou e eu achei que estava na hora de dormir. Mas antes de nos despedirmos, eu e Jaiminho Marlon Brando chegamos à conclusão de que estes papos furados dentro da noite na internet tem a vantagem de dar uma polida na memória, trazendo passagens que não lembraríamos em outra circunstância, porque ficaram perdidas numa curva da vida. E elas são muitas uma vez que no transcorrer de uma existência a gente acumula histórias de pessoas que juntas formam uma verdadeira multidão.