A fila da costela assada e a questão da ética brasileira

O brasileiro gosta das coisas certas, corretas, mas quando se trata dos outros – e não dele. Claro que eu não me refiro a todos os brasileiros, mas a uma parcela que embora não seja maioria esmagadora, é numerosa – e bem posicionada – suficiente para jogar um balde de pessimismo em quem acredita que um dia nos transformaremos num país civilizado. Encontramos esta ambiguidade – o que desejamos e o que não fazemos – no trânsito, nas filas dos bancos e dos mercados. Encontramos nos pais de alunos que pedem aos professores para aprová-los sem merecimento e assim por diante. E encontramos, mais lamentavelmente ainda, nas relações quase sempre desprovidas de mérito no preenchimento de cargos públicos. O que redunda em decisões estapafúrdias.

O brasileiro de uma forma geral não gosta que políticos roubem, mas o número de pessoas indignadas com o roubo e que dizem que fariam algo semelhante se lhes fossem dada a oportunidade é algo assustador. E contraditório. Toda esta lengalenga é por conta de uma cena que vi numa destas manhãs de domingo numa fila de casa de carnes, para comprar uma costela assada. Mulheres, homens, velhos e jovens, enfrentavam a fila. Estavam ansiosos e nervosos. Todos de olho na churrasqueira e nos movimentos dos dois atendentes. Porque no presente caso, assim que a mercadoria acabasse nos espetos, terminou. Não tinha mais. Embora fosse um açougue.  

Então, além da demora que a fila provocava, havia este detalhe, a insegurança, que acrescentava à espera na fila da costela assada um ingrediente de tensão. A pergunta não enunciada, mas que ficava na cabeça de todos que estavam no final da fila era: “Será que ainda vai ter alguma coisa quando eu chegar lá?”. A fila arrastava. Além da fila, havia as encomendas. Aí entrou um sujeito de terno, olhou a fila e foi falar com o gerente. Cochichou, deu riso esperto. O gerente foi na churrasqueira e pediu para um atendente: “Carioca, atende o nosso amigo, que ele está com pressa!”. Parece que o cara era juiz ou advogado importante. Era um bacana. Eu fiquei perplexo.

O gerente não respeitou os clientes, o homem da lei não respeitou a sociedade e ambos deram exemplo de que não adianta o povo formar fila ou respeitar normas de convivência social, porque vai aparecer um fulano de colarinho branco para furar a fila. Parece bobagem, mas não é. O sujeito que fura a fila da costela usa um padrão de comportamento que serve para ações em outros setores. E se age assim e continua agindo é porque está consciente da impunidade. Há pouco mais de uma semana eu fui a Maringá e encontrei um amigo com o qual estudei na Faculdade de Direito da UEM e ele me disse que é promotor. E passando diante duma instituição que não é pública e cuja reunião não era de interesse coletivo, encontrou viaturas fazendo segurança.

“Eu resolvi saber o que acontecia”, disse. O tenente falou que fazia segurança para um evento especial. O meu amigo se identificou e disse que desejava saber quem convocou a segurança. O tenente o chamou para um canto e disse: “O senhor sabe que tudo isto é informal, promotor. Não faz isto. Vai me complicar. O pessoal pediu e o comando decidiu”. Ele entendeu e foi embora. Ele disse: “Os grandões fazem o que querem. E aí eu tenho que enfiar neguinho desdentado na cadeia porque pegou litro de leite no supermercado. Você acha que assim este país tem futuro?”. Há quem veja nisto falta de cultura. Há quem veja o resultado de uma educação ruim. Somos um povo que lê pouco, tem indignação esquizofrênica, pavor de pobre e reverência boçal a quem é rico ou tem cargo público, esquecendo-se de que estes cargos foram feitos para servir a sociedade e não para repasto do ocupante. Embora sejamos uma democracia parece haver desconforto com os princípios básicos deste sistema, que pressupõe respeito ao bem público e aos direitos de quem não está no topo da escala social. Furar fila da casa de carne é fichinha para esta gente. Mas muito revelador.