A cobradora ameaçou dar um falso espirro, aquele que se anuncia assustador e acaba saindo como fosse velha freira gaúcha sussurrando “bah, tchê!”. Emiliano passou a catraca e sentou no primeiro banco ao lado de uma morena gordinha de cabelos bem negros e voz infantil. A voz de Gordinha parecia a de uma boneca de vitrine de loja de brinquedos. Gordinha conversava com a cobradora quando, no próximo ponto, o Cara entrou de cara feia e capuz negro atolado na cabeça. Ele também passou a catraca e ficou em pé no corredor ao lado de Emiliano. Dois pontos adiante outro sujeito subiu. Era Broder. O Cara olhou de cara feia para Broder e disse assim que ele passou a catraca: “Aí, Broder. Tu pegou a verdinha, mas minha paçoca virou farelo. Assim num tá legal, mano. Como é que fica?”. Broder deu risada meio sem graça e disse, incomodado: “Nada não, mano. Tá na mão”.

continua após a publicidade

Cara encarou Broder com olhos de fúria que podiam ser vistos com capuz e tudo. E, por fim, disse: “É. Não tô vendo nada”. Broder piscou o olho e disse: “Tio Mauro, Cara! Tio Mauro”. O Cara ficou olhando Broder, analisando. Depois disse: “Tio Mauro, é! Espero que este tiozinho compareça mesmo”. Broder fez expressão animada e disse: “Nivre dez, sacou Cara?”. Cara, sério, repetiu: “Nivre dez. Manhã, antes de batê o rango?”. Broder disse: “Num sô galinha. Batman, Cara!”. Cara encarou Broder mais uma vez e disse como desse uma nova chance: “Acho bom mesmo, mano! Porque se minha paçoca virar farelo, tu também vai virar farelo”.

Broder entendeu o recado e respondeu: “Relaxa, rapaz! Tu anda nervoso”. E, depois, os dois ficaram quietos. Perto do Centro Cívico desceram. As portas do ônibus fecharam. A cobradora olhou pela janela. Os dois rapazes estavam na calçada, Cara com o capuz atolado na cabeça e Broder agora com touca preta de lã que tirou do bolso traseiro. Ele estava de óculos escuros e acendia um cigarro.

A cobradora disse para Gordinha: “Menina, eu não entendi nada!”. Gordinha de voz infantil disse: “Código, menina! Tudo código. Estes meninos ficam falando em código por aí. Mas estes códigos não duram muito. Chega hora que todo mundo fica sabendo e eles têm que inventar outros códigos que também não duram muito. E assim vão passando a vida. Inventando código para esconder coisas que fazem”.

continua após a publicidade

Gordinha sabia do que falava. Ela disse que tinha irmão que andava com os caras. “Eles são tudo de gangue lá do bairro”, disse. E começou a traduzir para a cobradora a conversa do Cara com Broder. “Paçoca é bagulho, entendeu?”, disse. A cobradora disse que entendeu. “Nivre dez, significa que o sujeito vai entregar o bagulho às dez horas no ponto de ônibus do outro lado do Ervin, entendeu?”, disse a Gordinha. A cobradora disse que não entendeu e Gordinha disse que Nivre não era nível, era Ervin, da Churrascaria do Ervin, ao contrário.

A cobradora ficou encantada com a fluência de Gordinha no dialeto. “Menina, eu nunca ia descobrir. Agora entendi”, disse a cobradora. “Mas quem é Tio Mauro? É o chefe?”, perguntou. Gordinha disse: “Nada, boba. Tio Mauro é amanhã, porque em inglês é tomorrow”. A cobradora soltou um “Oh!!!!” de admiração por tanta erudição. Gordinha continuou mostrando fluência no dialeto da gangue do bairro: “Ele disse que não era galinha, porque galo canta de manhã. Ele disse que era Batman, porque o morcego sai à noite. Entendeu?”, perguntou Gordinha. A cobradora disse que não. Gordinha disse que o encontro seria à noite. A cobradora fez cara de admiração como se os dois rapazes em vez de pivetes de gangue, fossem intelectuais.

continua após a publicidade

Finalmente, Gordinha arrematou: “E virar farelo, nem precisa traduzir, né?”. A cobradora fez cara de quem desconfiava o que era, mas não tinha certeza. Gordinha olhou para Emiliano que nesta altura também ouvia com atenção. E meio discreta Gordinha moveu o dedo indicador duas vezes, como apertasse gatilho. A cobradora arregalou os olhos: “Credo, menina! E tudo isto na nossa frente?”. Gordinha disse: “Na nossa frente! Só que eles n&atil,de;o desconfiam que eu sou poliglota e entendi tudo”. E agora, além da cobradora, até Emiliano estava sabendo.