Ainda hoje aos 82 anos, trôpega, arcada e feliz, Dona Sincera Dornelles Pontes mantém os hábitos aristocráticos do tempo em que foi, na condição de legitima esposa do Sr. Roberto Carlos Carneiro Duarte, três vezes primeira-dama do município. O primeiro hábito que lhe agrada sobremaneira é o de ser chamada de Mãezinha ou de Sra. Primeira-Dama. O segundo hábito é o de sair fazendo compras pelas lojas da cidade sem remunerar os comerciantes. Ela escolhe o que bem lhe agrada, passa no caixa, onde a moça registra a compra, e diz: “Eu sou a Primeira-dama, minha filha”. Esta frase mágica diz tudo e não paga nada. A caixa sorri educadamente e responde: “Sim, senhora”. E Mãezinha vai feliz para casa, sem pagar a conta, enquanto a caixa guarda a nota fiscal embaixo do teclado da máquina registradora.

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O segundo hábito de acordo com os anciões e sábios da cidade surgiu por conta da incorporação na vida de Mãezinha do conforto no cargo. Os velhos são compreensivos: “Acontece que Mãezinha, coitada, era muito bajulada pelos munícipes e por todos os subalternos. Ninguém lhe contrariava. Até aí, tudo bem. Mas enchiam-na de agrados, regalos, mimos, brindes, oferendas, lembranças e outras coisas mais. Quando convidavam Mãezinha para jantar, não deixavam que ela pagasse a conta. Claro que as pessoas tinham segundas intenções. Sem contar as festas nas quais ela entrava com a pompa, a presença, o apetite e a sede”, contou Clarindo Washington Sampaio.

Resultado: em um mandato, até que o hábito não gruda tanto. “Em dois ele se aloja, mas em três, ele se incorpora ao espírito e não sai de lá nem com uma sessão de descarrego”, disse Sampaio. “Daí em diante desaparece a fronteira entre o que é público e o que é privado. Este é o problema de Mãezinha”, diagnosticou ele. E ele sabia do que estava falando pois foi secretário-executivo dos papéis burocráticos da Câmara Municipal por seis legislaturas. O Sr. Roberto Carlos morreu faz tempo. É um nome ilustre que a cidade ainda venera. Mas Mãezinha está viva e não perdeu a majestade municipal e tampouco o hábito de ir às compras sem remunerar os comerciantes. Que, aliás, não reclamam nem um pouco. Quando a coisa vira tradição, não tem mais jeito. Pode parecer estranho, mas esta é a verdade. Não reclamam porque não ficam no prejuízo.

Toda vez que Mãezinha sai de casa depois de anunciar que está indo às compras, a governanta Margarida Adelaide avisa o filho de Mãezinha, o professor Bievenido Carneiro Duarte, que leciona Filosofia e Ética nas escolas da cidade e ele sorrateiramente segue a mãe e sem que ela saiba e depois que ela deixa o estabelecimento comercial, ele paga a conta. O ritual se repete se mais adiante ela entra em outra loja. E se encerra quando ela, feliz da vida, volta para casa. “Pode parecer uma coisa estranha”, observou Clarindo Washington Sampaio, “mas se há a conivência dos comerciantes e principalmente não há prejuízo, não estamos diante de nenhum ilícito penal”. “Apenas diante de um hábito bizarro que revela certas particularidades de nossa sociedade e de nossa cultura ibérica”, concluiu ele.

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O Dr. Agamenor Yustrique, psicólogo da linha freudiana ortodoxa, acredita que a compreensão social com os hábitos de Mãezinha decorre do fato de ela ser uma pessoa doente. “Na minha opinião, ela sofre de crise de abstinência”, disse ele, depois de tirar cuidadosamente os óculos e colocar no lado esquerdo da camisa com as hastes para fora do bolso. “A crise de abstinência ataca a pessoa que tem um vício”, acrescentou ele. “E Mãezinha foi viciada em poder”, prossegue, seguro de que aquilo que estava falando era a mais pura realidade. Para reforçar a sua tese, ele recorreu a uma declaração atribuída ao ex-presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães: “O poder é o maior dos afrodisíacos”.

“Ora, ora, convenhamos. É uma grande judiação, para não dizer crueldade, submeter uma pessoa a doze anos de, overdose de afrodisíaco e depois tirar tudo isto dela. A pessoa simplesmente perde o rumo”, disse ele. E ele encerrou o seu diagnóstico com a seguinte frase: “Errado está o povo que viciou Mãezinha. E abandonou-a depois que ela se tornou uma dependente crônica.”. Depois de ouvir aquilo eu fiquei pensando que havia certo sentido, ou seja, alguma verdade em tudo o que ele falou. E eu fiquei com uma pena danada de Mãezinha. Tadinha dela. Não deve haver nada mais terrível para uma primeira-dama que perder a majestade.

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