A estranha prova de amizade de Lucinha Calógeras

A minha tia Ana que tem 88 anos me contou domingo à tarde na varanda de sua casa enquanto caia uma chuva preguiçosa, que amigos se conhecem na hora do aperto. Esta frase é velha e acho que todo mundo conhece. Mas fingi surpresa para não cortar o barato da velha. Ela disse que era para eu ter paciência que alguns amigos mesmo que não sejam presentes na hora do aperto não significa que não sejam amigos. É que eles têm um jeito diferente, que pode até ser extravagante e bizarro. Este era o caso de Dona Lucinha Calógeras. “Você se lembra dela?”, perguntou. Eu disse que me lembrava.

Dona Lucinha veio no começo dos anos 60 de Alagoas para o Norte do Paraná com os filhos Miguel, Manoel e Maria. Ela foi morar ao lado de nossa casa. Era uma família alagoana, o que significa que eram fiéis até a morte e não levavam desaforo para casa. Gente que falava pouco. Miguel era um poço de silêncio. Manuel era ruim de bola e um dia quase me espancou quando eu disse que ele era perna-de-pau. Até hoje desconfio que ele entendeu algo diferente embora eu não saiba o que tenha entendido. Maria era uma moça tímida de corpo rijo, escultural, meio bronca, mas jeitosa. Não era preciso ser um expert para perceber que os hormônios dela estavam mais agitados que o Tungurahua, um vulcão furioso que existe no Equador.

Maria tinha o pescoço meio torto, mas as pernas eram perfeitas e o resto estava em cima. Eu me recordo que em 1966, nas festas juninas, Dona Lucinha organizou um arrasta-pé na frente de sua casa e Maria me chamou para dançar. Ela me juntou de um jeito que eu fiquei com medo de levar um cacete de Manoel, o irmão mais novo de Maria, que era forte, brabo e ignorante, além de ter ciúme danado da irmã. Quando a gente entra na adolescência, pelo menos era assim no meu tempo, qualquer contato com um corpo como aquele de Maria fazia a gente trepidar internamente. Mas, felizmente, não aconteceu nada violento.

Eu não me assanhei para o lado de Maria, porque se fizesse algo – a coisa que eu desconfiava que Maria estava doidinha para fazer – Manuel me matava a pauladas, só para me ver morrendo sofrendo. Não tinha nada mais sagrado para ele que a virgem Maria – a irmã dele. Até um dia aparecer um capiau alto, bonitão, brilhantina Glostora no cabelo penteado e conquistar Maria. Conquistar é mania de dizer. Maria estava topando qualquer parada. Pedro só tinha um problema. Ele tinha dois dentes – os caninos – na parte de cima da boca. Mas falava como se tivesse todos. Maria casou com Pedro. Que trabalhava de ensacador de café nos armazéns da cidade. Uma espécie de estivador.

Um belo dia Pedro jogou na loteria, ganhou uma bolada preta e ficou endinheirado. Quando isto aconteceu, Dona Lucinha já se mudara para o outro lado da cidade. Ela disse para Pedro não se esquecer de minha tia e ele procurando ser gentil foi a um bazar da cidade e comprou uma sombrinha para minha tia, outra para minha avó e até uma para minha irmã mais velha. Com tanta sombrinha nova, todo mundo em casa ficou torcendo para cair uma chuva maneira para estrear os presentes. Depois, Pedro colocou dentadura e resolveu investir em um novo negócio: vendedor de melancia.

Dona Lucinha disse que Pedro podia vender melancia, mas uma daquelas seria presente para minha avó. Dona Lucinha pegou a maior melancia no caminhão, botou uma toalha na cabeça e botou a melancia em cima da cabeça. E por volta das 10 horas da manhã foi em direção da casa de minha avó. Ela atravessou a cidade com a melancia na cabeça e ao chegar à Catedral, ela perdeu o caminho e foi direto pela Avenida Cerro Azul, passou pelo cemitério e foi parar na zona do meretrício. Como achou o lugar estranho, fez o caminho de volta até que no começo da noite, se localizou e achou nossa casa. Ela estava cansada e estropiada. E entregou a melancia para minha avó. Depois de contar esta história minha tia perguntou: “Não é bonita uma coisa desta?”. Eu não achei bonito uma velha sair de casa e ficar por horas andando com uma melancia na cabeça pela cidade. Mas eu disse que realmente era de comover. Era uma grande prova de amizade.