A estranha história de Mona Lisa e o tarado insaciável

O tarado tinha setenta e cinco anos e estava no leito de morte rodeado por três pessoas entediadas: a mulher e dois filhos. Ele balbuciou quase inaudível: “Quero Mona Lisa”. A mulher rosnou: “Quem?”. O filho acudiu, para não virar escândalo: “A menina do 301”. A mulher não sabia. Espumou de raiva e repetiu o que sempre dissera: “Tarado”. A filha virou a cabeça para não olhar o pai no leito e sussurrou: “Velho nojento!”. O filho tentou segurar o riso de deboche enquanto disse baixinho e babando: “É uma ninfeta!”. Eles se entreolharam. Mais um pouco o velho ia embora, e cada um cuidar da vida. O apartamento e a chácara já tinham compradores. O negócio era: chama ou não a ninfeta?

A mulher surpreendeu: “Chama logo a putinha”. Não ia criar dificuldades. Faltava pouco para se livrar do tarado insaciável. E também pensou no medo de negar o pedido e a alma do morto aparecer de noite para atazanar. Queria viver em paz. O filho deixou o apartamento e foi ao 301. A garota chegou assustada. De vestido listado de azul e branco com desenho amarelo na gola, sandálias marrom e cabelos loiros longos e fartos caindo sobre os ombros. Quinze anos. Não sabia que o velho morria. Há dias não o via. Ele a viu e levantou e dedo: “Aproxime-se Mona Lisa”. O filho falou: “Vamos deixar os dois”. Na sala, a mulher remoeu de ódio: “Velho tarado gastava aposentadoria com uma criança”. A filha revoltada: “Mais nova que eu!” O filho boquiaberto: “Don Juan sabe o que é bom”.

No quarto, ela perguntou: “Por que chamou?” O velho falou pausado: “Estou morrendo”. Ela pensou que ia ficar com medo. Mas não. Ela olhou. Ele parecia um cadáver. Pele cor de chumbo, viscosa e fria. E o cheiro da morte no quarto. Ela disse: “Eu sei”. A voz dele arrastada, cansada: “Eu só queria ver você mais uma vez”. A voz dela era um cântico de anjo na terra. Ele queria ouvir: “Por quê?” Ele sorriu o riso pálido de homem que vai morrer. O mundo nem sempre é um paraíso. Disse que não falava com ninguém até conhecê-la. Era vivo quase morto. A mulher nem olhava, o filho ignorava e a filha odiava. Era cão sem dono. Todo mundo rosnava como cães ou ria como hienas.

O dia que disse oi para ela e ela disse oi na ciclovia, eles ficaram amigos. Amigos de encontros na ciclovia. Um dia pediu para ela fazer uma coisa que ele não via há tempo. Ela fez. Direitinho. Do jeito que ele sempre quis. Ali na cama ele pensou naquilo e disse: “A única pessoa em toda a cidade que me fez feliz. Você”. Ela abaixou a cabeça.

A garota sussurrou: “Eles dizem que o senhor é tarado”. Os lábios dele estremeceram: “Os vermes comeram as cabeças e pensam por eles”. Ela olhou a porta fechada: “Eles podem ouvir”. Os lábios dele tremeram e uma lágrima escorreu pelo canto do olho direito: “Só pensam porcarias”. Balbuciou: “Deixem que ouçam”. Ela perguntou: “O senhor não se incomoda?” O velho respondeu: “As únicas coisas que incomodam os velhos são o desprezo e a solidão”. Ele a olhou e sorriu mais uma vez: “Tchau!”. Ela respondeu: “Tchau!” E foi assim que ele morreu.

Ela ficou ali no quarto, parada, olhando o morto com piedade, lembrou que ele contava histórias do tempo em que foi criança e a cidade era mais fria e diferente que hoje. Ele dizia ter saudade do tempo em que comia doce de casca de laranja em caldas. Ele olhou para a menina e disse: doce de casca de laranja brava com calda. Ela ficou com tanta peninha do velho que sorriu e disse que sabia fazer um docinho bem gostosinho: “Aprendi com a avó”.

No dia seguinte apareceu na ciclovia com tapawer de tampa azul com doce de casca de laranja com calda. Ele sentou no banco perto do playground da ciclovia e comeu. Depois ficou parado pensando no tempo em que foi criança. Ele disse: “Nunca pensei comer isto outra vez”. Estalou a língua. Ela nunca o viu tão feliz. Agora na cama morto com um sorriso nos lábios. O sorriso do dia em que comeu doce de laranja com caldas. Os olhos dela marejaram. Depois limpou e quando saiu, disse: “Ele está morto!”. Os três se entreolharam espantados. Sabiam que ia morrer. Mas não assim de repente e eles ausentes. A mulher perguntou: “O que foi que ele disse?”. Mona Lisa sorriu, metade criança e outra demônio. Aprendia a ser má para sobreviver entre os homens. Alisou o ventre puro e disse: “Ele pediu para dar o nome de Ludovico”.

O rosto da mulher transfigurou de assombro. A filha diss,e: “Oh, não! Isto não”. E levou a mão à boca para sufocar um palavrão. O filho na porta entre a sala e o quarto olhou o pai morto na cama e disse: “Que velho safado e sem vergonha!”. A menina foi embora pensando que não ficariam angustiados muito tempo. Mas achou justo entrarem no mundo que criaram para o velho, o mundo infame que nunca existiu.