Por Edilson Pereira

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Então tive a ideia de tomar um vinho. Era por volta das 16 horas. Enquanto tomava o vinho, aceitei o convite de minha tia para comer algo antes de viajar. Eu me esqueci de um detalhe: minha tia tem o hábito de deixar as coisas congeladas na geladeira por vários dias, longas semanas e até alguns meses. Desconfio que procurando com jeito, ela vai encontrar algum negócio do século passado. Alguém pode dizer: “Mas ela é maluca!” Não é questão de maluquice. Ela vai fazer noventa anos daqui a quarenta dias. E nesta idade a pessoa perde um pouco a noção do tempo. Ela pegou uma carne que parecia um pedaço congelado de mamute e fez um ensopado. Eu fui para a varanda terminar o vinho.

Quando ela terminou o ensopado e colocou na mesa, eu achei que a coreografia estava boa. Aquilo estava com jeito de ter ficado gostoso. Talvez fosse o efeito da presença de algumas bactérias pré-históricas. Mas o diacho é que sentei e comi o negócio. E repeti o prato. E voltei para a varanda decidido a esperar as horas passar sem ansiedade. Ledo engano. Não demorou muito para eu sentir um troço estranho: cólicas que pareciam lanças incendiárias tentando abrir um buraco na minha barriga. Um sal de frutas pode ser um bom remédio, mas ele tem a mesma eficácia nestes casos quanto um barco no meio de um tsunami. Eu apelei feio: tomei meio vidro de leite de magnésia. E esperei o resultado. E quando ele se manifestou corri para o banheiro. Por fim, perto das 19 horas, eu vencera o desconforto e desalojei de meu estômago até os maus pensamentos, se é que eles tiveram a péssima ideia de se esconder lá.

A tática deu resultado. Tratei de descansar e perto das 23 horas chamei um táxi. Quando eu cheguei à rodoviária, peguei o ônibus de dois pavimentos, um inferior e outro superior e sentei na poltrona número dois, na primeira fila do pavimento superior e que oferece visão panorâmica da viagem, inútil quando a viagem é noturna. Eu tirei os sapatos e não tinha certeza de que a viagem seria tranquila. Ainda estava meio abalado com a indisposição de horas atrás. O banco ao meu lado estava vago. Melhor. Para minha surpresa, assim que o ônibus partiu eu caí no sono. Acordei perto das 5 horas. Acordei porque tinha uma perna de mulher perto de meu rosto. Era uma bela coxa que tentava ir para o meu lado esquerdo, enquanto o resto do corpo estava no lado direito.

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Ela veio de um banco dos fundos e quando acordei a dona da perna tentava ocupar o lugar vago ao meu lado. Como eu estava entre ela e o banco, para não me acordar ela teve a ideia de passar sobre mim. E como acordei enquanto ela tentava fazer isto, eu estava com a coxa dela três dedos do meu rosto. Era loira de cabelos longos de corpo até bonito, embora meio volumoso. Eu me surpreendi com a roupa da moça. Ela usava uma espécie de vestido preto parecido com camisola preta, de tecido fino. Ela me olhou de cima para baixo e disse: “Desculpe. É que faz um ano que eu não vejo a minha mãe”. A frase não fazia sentido porque ela não ia conseguir ver a mãe através da janela do ônibus. Ela fez um movimento e a perna roçou o meu braço: era rija, viscosa e fria, porque o ar-condicionado do ônibus estava num ponto de fazer esquimó bater os dentes.

Pensei: será pesadelo? Por que a dona usava traje sumário dentro da geladeira em que se transformou o ônibus? Fiquei quieto. A dona sentou ao meu lado e disse que se chamava Genilda Eugênia de Bragança. Ela explicou: “Eu sou bailarina e danço tango, sabe?”. Não sabia. A dona fez gesto com o traseiro e disse: “Acho que sentei em cima de um negócio duro”. Eu pedi para ela se levantar. Ela perguntou: “O senhor vai passar a mão?”. Eu disse que não tinha intenção, que ia pegar a minha calçadeira que deixei no banco ao lado porque ia precisar dela na hora de calçar o par de sapatos e ela tinha acabado de sentar em cima dela. Ela olhou a calçadeira que eu fiquei segurando com as duas mãos. De repente, ela jogou o corpo sobre mim. Eu pensei: “Quais as intenções desta dona?”. Ela se virara para abrir a, cortina e ver onde estávamos. O tempo estava nublado e ela não ficou sabendo. “Ainda estamos longe, não é mesmo?”, perguntou. Eu não tinha a mínima ideia, mas disse que sim, estávamos longe.

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Procurei dormir novamente e se não conseguisse ia fingir que estava dormindo. E foi o que eu fiz. Quando chegamos em Curitiba, tratei de cair fora. A moça me seguiu e ficou parada no terminal olhando para todos os lados. Aí ela disse: “Mamãe, eu voltei!”. Sim, mãe, a Genilda voltou. A mãe abriu os braços: “Minha filha, ainda bem que você voltou”. Se combinassem não seria perfeito. A mãe estava ali para recebê-la de braços abertos numa manhã fria e chuvosa. E eu também me sentia vencedor porque chegamos eu e meu estômago com muitos planos. O principal era procurar um médico.