O País chorou no final da semana passada a morte do ator e cineasta Anselmo Duarte. Um despacho da Agência Estado ajuda a compreender o tamanho da perda para os mais desavisados: “Além de ter sido um dos maiores galãs do cinema nacional, Anselmo Duarte dirigiu O Pagador de Promessas, o único filme brasileiro que conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França, um dos mais importantes do mundo, e do qual foi membro do júri em 1971. Baseado em peça de Dias Gomes, o longa também foi finalista do Oscar no mesmo ano. O filme tem um elenco de astros e estrelas do cinema nacional que despontavam nos anos 60s, como Leonardo Villar, Glória Menezes, Norma Bengell, Dionísio Azevedo, Othon Bastos, Geraldo del Rei, Antonio Pitanga e outros. (…) Depois da consagração internacional de O Pagador de Promessas, Anselmo Duarte fez ainda um outro filme, Vereda de Salvação (1964), baseado em peça de Jorge de Andrade, com o qual foi indicado ao Urso de Ouro do Festival de Berlim, mas que não obteve reconhecimento tão grande quanto sua obra-prima vencedora em Cannes”.

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Cortou-se deste obituário um trecho que pode parecer desimportante, mas merece referência: Anselmo atuou em alguns dos maiores sucessos do cinema brasileiro da época – falando aí em bilheteria, não em repercussão internacional, como foi o caso de O Pagador de Promessas. Foi por causa do brilho como ator (galã, como resumiu a Agência Estado) que Anselmo ganhou a popularidade e o apoio necessário na época para produzir sua obra-prima.

Assistir ao filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes pode parecer uma tarefa hercúlea – ainda mais para o público que hoje lota as salas de cinema para assistir aos sucessos de ficção científica. Em preto e branco, com andamento mais lento (até para expor com rigor o sofrimento do retirante que deseja entregar a cruz que carrega à Igreja, que não aceita por tratar-se de uma promessa feita a uma mãe-de-santo para salvar a vida de um burro), O Pagador de Promessas é um filme típico de um período do cinema brasileiro, em que se projetava o chamado Cinema Novo olhando para a realidade dos grotões do País.

Isto foi possível graças ao texto sempre afiado e contestador de Dias Gomes, mas também à “pretensão” de Anselmo, que foi corajoso ao lançar um filme que criticava os políticos, os líderes religiosos e a própria sociedade conservadora do nordeste – num simulacro do que acontecia no restante do Brasil. Inteligente, o cineasta coalhou o filme com artistas conhecidos, como os protagonistas Leonardo Villar e Glória Menezes e os coadjuvantes Dionísio Azevedo, Geraldo del Rey e Norma Bengell (esta, naquele momento a vedete mais famosa do País).

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Anselmo Duarte conseguiu fazer o que pouco se faz por aqui: combinar arte engajada e popular. De nada adianta imaginar que vai se transformar o mundo com a arte. Iniciativas cheias de boas intenções foram feitas, e nada aconteceu – porque não será apenas com uma intervenção cultural que se resolverão os problemas brasileiros, que são muito profundos e dependem da ação de todos nós. Ao mesmo tempo, é impossível viver apenas com a arte comercial, que alguns chamam de “anti-arte”, porque não se preocupa com o conteúdo e apenas com a forma, deixando tudo mais palatável para o gosto médio.

O Pagador de Promessas foi um ato de coragem e de correção de Anselmo Duarte. Usando formatos e personas que aprendeu no cinema comercial (as chanchadas da década de 1950), ele levou ao grande público uma obra política, que levava à reflexão. Não à toa foi tão bem recebido fora do País – a arte também buscava formas de se aproximar do povo em outras nações. A herança de Anselmo está viva, basta que os agentes culturais tratem dela com carinho e reprocessem seu estilo.

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