No auge do período ditatorial comandado na União Soviética por Josef Stalin, criou-se um dos mais bizarros conceitos de abordagem história que foi o de apresentar a versão de acordo com a ocasião. Uma simplificação do velho ditado “o preço de acordo com o freguês”. Assim, se num momento a Alemanha nazista era uma aliada temporária do regime e Hitler não era o diabo de bigodinho, num momento seguinte, quando os nazistas invadiram o território soviético, imediatamente a Alemanha passou a ser reino do mal na Terra e Hitler um odioso demônio de farda.
A facilidade com que os enfoques sofriam alterações bruscas decorre de um hábito anterior, o de maquiar a história segundo os humores do dia. E não apenas as versões de fatos. Mas também até as fotos. Ficou famoso o caso de uma foto em que Lênin discursa em Moscou ao lado de Leon Trotsky, que veio a ser oponente de Stalin na luta pelo poder. Nos documentos históricos, a imagem de Trotsky desapareceu: o homem sumiu. Com retoques do que podemos chamar de um Photoshop primitivo. O mesmo tratamento foi dispensado a outros dissidentes do regime. Caiu em desgraça, sumia das fotos e dos livros. Adulou Stalin, virava herói e ficava nas fotos.
Esta falta de respeito com a verdade e a própria história inspirou o escritor britânico George Orwell a escrever o livro 1984. Quem leu sabe que grande parte do esforço dos países no livro era para apagar o passado com intuito de justificar um presente que poderia ser apagado mais adiante para justificar um futuro que também estava condenado a se evaporar para virar nada mais que uma versão de momento e atender a necessidades imediatas do Grande Irmão, um personagem onipresente, inspirado em Josef Stalin.
A menção do episódio histórico e seu correlato literário é por conta de algo que estaria para ocorrer, se levada ao pé da letra a declaração do secretário de Comunicação do PT, deputado federal paranaense André Vargas. Ele disse que o ex-presidente Lula, ancorado em seu vasto prestígio popular e fora do governo, estaria empenhado em reabilitar o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, que caiu em desgraça ainda no primeiro governo Lula, por conta do episódio histórico chamado mensalão e também por conta de manipulação de recursos não contabilizados, num processo chamado vulgarmente de caixa dois.
A tese que Lula vai defender – e que deixou engatilhada assim que apeou do poder – é que o mensalão não existiu. Tudo aquilo não passou de “uma tentativa de golpe”. E quanto a Delúbio, “ele foi injustiçado”. Segundo Vargas, “ele estava numa função política. Se ele fez algo individualmente, foi tentar, talvez erradamente do ponto de vista legal e eleitoral, dar suporte político às campanhas”. A frase “talvez erradamente do ponto de vista legal e eleitoral”, é um primor. Ela carrega quase uma confissão de culpa. Se Delúbio fez “erradamente do ponto de vista legal”, porque a reabilitação? Por que Lula se acha tão poderoso que pode corrigir o passado, tornando certo o que era errado e vice-versa?
O certo é que Vargas anunciou: Delúbio vem aí. Deve retornar ao PT em março ou abril. “Se questionado, Lula vai dizer que é favorável” à volta de Delúbio, anunciou Vargas. E como um desejo de Lula é uma ordem, Delúbio corre o risco não apenas de voltar como também o de virar um santo na galeria dos mártires nacionais. E para a reabilitação ser perfeita, quem sabe seja contemplado com um cargo de prestígio no governo da presidente Dilma Rousseff. Afinal de contas, não há nada mais deselegante que uma reabilitação mal feita. Ou se faz bem feito, ou não se faz. Borracha existe para apagar a história. E caneta para escrever novos enfoques. Como já ensinou Josef Stalin. E Delúbio não fez nada demais: só algumas coisas “erradamente do ponto de vista legal”.