“Ninguém pode tirar de ninguém o direito de sonhar. Imaginar e querer ter uma bicicleta, um videogame, um computador. Sonhar em ser médico ou advogado quando crescer. E até morar em um outro lugar. Sonhos de quem mora em bairros nobres? Não. Sonhos de qualquer criança. Nem mais a dura realidade consegue acabar com o sonho de alguém. Sonhar pode parecer nada condizente com o dia a dia difícil. Mas as crianças tudo podem. E, como crianças, fazem exatamente o que precisam fazer. Sonham com um futuro melhor, mesmo em meio à lama, pobreza, dificuldades e violência. Essas são as crianças que moram nas vilas União e Icaraí, no bairro Uberaba, em Curitiba”.

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Este é o texto da repórter Joyce Carvalho, destaque da edição de domingo de O Estado. Uma matéria que recuperava o Dia da Criança, comemorado na segunda-feira. As palavras da repórter e as imagens do fotógrafo Daniel Caron, que foram até as sofridas vilas União e Icaraí, certamente são mais expressivas que qualquer texto que se escreva neste espaço. Mesmo assim, é impossível não ficar sentido com uma situação que só foi escancarada por causa de uma terrível tragédia, a chacina que matou oito pessoas há dez dias na região do Uberaba, periferia de Curitiba.

Não temos condições de sequer imaginar como vivem as crianças, infelizes e inocentes vítimas da falta de visão governamental, da péssima distribuição de renda e dos problemas inerentes a quem vive em bolsões de pobreza, notadamente a violência e o tráfico de drogas. Quem vive em bairros residenciais de Curitiba – ou de outras grandes cidades do interior do Estado – têm todas as suas necessidades supridas pelas autoridades públicas (postos de saúde, hospitais, módulos de polícia, educação, transporte coletivo) e pela iniciativa privada (mercados, bancas de jornais, farmácias, lojas de roupas, etc.).

Quem mora na periferia é totalmente desassistido. E ir à Vila Icaraí é ter prova viva disso. Os serviços públicos estão distantes dos moradores, que como não têm também a chance de comprar produtos de primeira necessidade viram reféns dos criminosos. Estes, com o dinheiro de seu “trabalho”, tornam-se provedores de tudo para as famílias carentes, que não têm para onde fugir -ou se ligam aos bandidos, ou sofrem com a falta de tudo.

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O que mostra a falta de assistência do poder público. Ausente quase totalmente destas regiões, a autoridade inexiste para os mais pobres, que só têm os “vizinhos” como referenciais de respeito. E é por isso que os famigerados toques de recolher, que eram notórios nas vilas Icaraí e União, acabavam respeitados pela maioria. E só vieram à tona porque alguns desavisados andavam pelas ruas do Uberaba e acabaram assassinados friamente por bandidos cruéis.

Passados dez dias da tragédia do Uberaba, conhecem-se alguns dos matadores, que foram apresentados na última sexta-feira pela secretaria de Estado da Segurança Pública. E quando se imaginava que governantes aproveitariam o ensejo para anunciar medidas de apoio aos necessitados, apenas ouviu-se a voz do secretário Luiz Fernando Delazari chamando de “abutres” os deputados estaduais que queriam ouvi-lo na Assembleia Legislativa do Paraná. Na cabeça privilegiada do secretário, a população que sofre com a violência deve ser formada de “abutres” de várias espécies.

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No meio deste panorama desolador, estão as crianças, estas inocentes vítimas, portadoras de uma infância esquecida. Elas são parte de um mundo que não lhes pertence – um mundo de presentes, de videogames, computadores, bolas, bonecas e outros brinquedos; de boa educação, de fantasia, de sonhos que poderão virar realidade. São apenas tristes crianças, que não têm sequer direito à única coisa que deveriam ter: a alegria.