A arte de Glauber

Um dos personagens mais incompreendidos da cultura brasileira está recebendo um devido reconhecimento do Ministério da Cultura (MinC). A matéria é do jornal O Estado de S. Paulo: “O ministro da Cultura, Juca Ferreira, anunciou a aquisição do Acervo de Glauber Rocha pelo Ministério da Cultura para acesso público. A cerimônia do anúncio será em Salvador. No conjunto estão os 22 filmes feitos por Glauber, além de 80 mil documentos, que incluem sua correspondência pessoal, roteiros de filmes, peças, poemas e romances. Do total, 223 roteiros e projetos de livro permanecem inéditos. O investimento do Ministério da Cultura na compra do acervo foi de R$ 3 milhões”.

Era o mínimo que a administração pública, ainda mais em um governo com tendência de esquerda, poderia fazer com o legado de Glauber, que em determinado momento era o único brasileiro capaz de se fazer ouvir nos circuitos intelectuais da Europa e dos Estados Unidos. Por isto, e por sua atitude sempre inconsequente contra o sistema, ele foi proscrito durante o Regime Militar, e chegou a criar uma confusão dentro do governo de Ernesto Geisel por pretensamente defender o general Golbery do Couto e Silva, que era criticado por grande parte do Exército.

O baiano Glauber se notabilizou no Rio de Janeiro, onde encontrou diversos jovens que pensavam como ele no início da década de 1960. João Batista de Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Roberto Santos e Ruy Guerra eram alguns destes garotos, que discutiam cinema, futebol, mulheres e a vida em torno de mesas de bar em Ipanema. Enquanto tentavam mudar o mundo, faziam da estética “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” uma realidade cinematográfica internacional.

E a presença mundial do que depois se chamou de Cinema Novo foi “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o primeiro filme de Glauber que rompeu fronteiras. Depois vieram “Terra em Transe” e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, que foram vistos em todos os cantos, influenciaram gerações de cineastas aqui e lá fora, e que resumiram em película a efervescência do pensamento do cineasta.

Antes de muitos pensadores, Glauber Rocha (meio sem querer, meio querendo) preconizou o fim das ideologias, buscando na experiência própria e nas relações interpessoais as soluções da humanidade. Era notadamente de esquerda, mas não concordava com todos os métodos daqueles grupos que então dominavam o pensamento oposicionista no Brasil pós-1964. Tinha, acima de tudo, uma visão cáustica, que atrelava a arte ao pensamento e fazia do cinema uma psicanálise de grupo.

Quando se exilou na Europa, no início dos anos 1970, Glauber perdeu o apoio de muitos daqueles que estavam ao seu lado. Sem ter entrado na luta armada, e sem ter buscado na comunicação simplória uma forma de enfrentar a ditadura, o cineasta foi esquecido pela “esquerda constituída”. Quando voltou ao País, era quase uma caricatura de si mesmo, abalado por problemas familiares. Partiu, mas deixou uma obra que, acompanhada com atenção, mostra grande regularidade – ainda mais quando se conhece a história e o estilo “glauberiano”.

O fato do MinC ter investido quase três milhões de reais na obra de Glauber Rocha precisa ser comemorado. Afinal, nada melhor que recolher ao acervo público algumas das manifestações mais originais que a cultura brasileira apresentou no século passado. E tentar entender o cineasta é buscar a compreensão de um período ainda cheio de sombras, e que pode explicar muito do que acontece atualmente no País.

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