Um dos aspectos mais fascinantes em exercer o jornalismo é a possibilidade de conhecer mundos novos, pessoas diferentes, ter acesso a experiências que jamais seriam possíveis, caso não se tivesse a tarefa de reportá-las. Este privilégio profissional pode surpreender e até mudar o rumo de uma vida. O encantamento com uma atividade, situação ou causa é capaz de roubar o jornalista de sua profissão, levando-o para outros caminhos de trabalho e gratificação.
No início de 1999, há pouco mais de dez anos, uma reportagem me faria experimentar algo assim. A Lei de Transplantes, elaborada para organizar os procedimentos de doação e transplantes de órgãos no Brasil, era então uma novidade e uma grande revista feminina me encomendou uma matéria sobre a situação das pessoas que aguardavam por um transplante no país.
Naquele tempo, cerca de 70% das pessoas que estavam na fila de transplantes morriam antes de fazer a cirurgia. Nos hospitais superlotados, poucos profissionais se dedicavam à viabilização dos transplantes. As pessoas não imaginavam que a morte cerebral era irreversível, mesmo quando o coração continuava batendo, e algumas acreditavam que órgãos poderiam ser retirados dentro dos hospitais sem o consentimento das famílias.
A matéria foi feita e publicada, mas a pauta me parecia ainda aberta. Depois que se conhece como vivem as pessoas que estão nas filas de transplantes, tudo muda. Era preciso aumentar a evidência daquela angustiante realidade, propagar informações corretas sobre os transplantes, promover mais discussão sobre a doação. Era importante também que a morte deixasse de ser um tabu, pois valores fundamentais afloram quando refletimos sobre a nossa finitude e o que será feito do nosso corpo depois que deixamos essa vida.
Dessa experiência, surgiu o livro Procura-se um Coração, que conta a história imaginária de Lela, uma adolescente que vê sua vida transformada quando sua mãe adoece e entra numa fila de transplantes. Depois surgiram seus amigos, seus amores, sua família, seu cotidiano em casa e na escola. Ao longo da história, os jovens se deparam com as questões críticas dos transplantes de órgãos, mobilizam-se em torno delas, propõem saídas. E assim eu me tornei uma escritora.
Felizmente muitos avanços aconteceram na área de transplantes do nascimento do livro até a sua publicação, mas ainda há muito por fazer. Existem no Brasil 69 mil pessoas aguardando por um órgão e a falta de consentimento das famílias ainda é um fator importante para a não doação.
Procura-se um coração nasceu e foi lançado com esse propósito: estimular a discussão sobre a doação de órgãos e se tornar um instrumento para esclarecimento da questão para os jovens. No futuro, como profissionais atuantes na sociedade, eles poderão tornar a doação de órgãos um procedimento mais corriqueiro, para que a incrível tecnologia médica que já conquistamos para essas cirurgias em nosso País possa salvar mais vidas.