Frei Antônio Moser, teólogo – Fonte: Comunidade Canção Nova
Com a mansidão de sua voz e sua clara opção inspirada no Evangelho a Dra. Zilda deixa um legado de extrema atualidade. Ela bem sabia o que acontece com os que constroem sobre a areia. Esse é seu testamento: construir sobre a rocha dos valores que se encontram tão bem expressos no Sermão da Montanha. Talvez não seja exagero dizer que Deus a inspirou quando escreveu o último parágrafo da sua palestra no Haiti, para que fosse seu testamento, um legado para todos:
“A construção da paz começa no coração das pessoas e tem seu fundamento no amor, que tem suas raízes na gestação e na primeira infância e se transforma em fraternidade e responsabilidade social. A paz é uma conquista coletiva. Tem lugar quando encorajamos as pessoas, quando promovemos os valores culturais e éticos, as atitudes e práticas do bem comum.” Zilda Arns
A construção da paz começa no coração das pessoas… À primeira vista a afirmação parece um tanto deslocada no espaço e no tempo. Desde que, sobretudo a partir da década de 1970, com razão, se deu grande importância aos fatores econômicos e políticos para se chegar a um equilíbrio social, já não é tão comum ouvir alusões a esse nível. No entanto, podemos associar a palavra coração com conversão. Hoje, sabe-se da importância das pessoas e das estruturas para se conseguir a construção da paz. Corações endurecidos serão uma eterna barreira para qualquer passo realmente decisivo onde não reine o ódio, mas o amor.
…e tem seu fundamento no amor… Muito se fala no amor e, no entanto, existem muitos amores diferentes. Evidentemente que esses sentimentos podem exercer um papel significativo na construção da paz interpessoal e social. Acontece que, hoje, mesmo em se falando muito de amor, se acredita mesmo é na força das ciências e das tecnologias. Nelas parece encontrar-se a solução de todos os problemas humanos. Ora, por mais que devamos nos alegrar com os inegáveis avanços, sem o amor no sentido evangélico do termo, corremos o risco de sermos levados ao sentido contrário da paz. O verdadeiro amor humano sempre tem um pano de fundo: um olhar para o outro, para o diferente e até para o estranho, mas com os olhos de Deus.
…que tem suas raízes na gestação e na primeira infância. Nessa linha de raciocínio, a gestação da qual a “mãe das crianças” fala, não é certamente aquela transmissão fria que acontece nos gélidos laboratórios, onde se refugiam muitos interesses estranhos ao amor. A mecanização da vida se torna a cada dia mais uma realidade. Ninguém põe em dúvida os relevantes serviços que os laboratórios prestam e podem prestar, mas desde que subsidiem e não “substituam” o casal. A gestação, fruto de um gesto concreto de amor, tem um ponto de partida completamente diferente. Hoje se admite tranquilamente que esse primeiro gesto já pode deixar marcas positivas ou negativas.
…e se transforma em fraternidade e responsabilidade social. A fraternidade parece ser uma das aspirações que acompanham a humanidade, porém se sente continuamente ameaçada pelas rivalidades, pelo ódio e pela guerra. Em algum lugar do mundo sempre há conflitos mais ou menos sangrentos. Ora, a conflitividade faz parte da nossa condição humana e remete, entre outros fatores, para a falta de um ambiente familiar, onde o amor seja cultivado com muito empenho. É somente nesse clima que se pode esperar uma responsabilidade social das pessoas. A irresponsabilidade manifesta em tantos aspectos na sociedade não será superada por atitude madura por meio de meras imposições.
A paz é uma conquista coletiva.
O velho imperativo romano “se queres a paz, faze a guerra” na realidade parece mover a mentalidade de um significativo número de líderes mundiais. Os exemplos ainda quentes das invasões do Oriente Médio comprovam isso. Alguns líderes buscam por todos os modos colocar sobre sua cabeça uma coroa, símbolo de uma missão messiânica. São os eternos salvadores da pátria. São p,essoas pequenas para uma tarefa tão ingente como essa de construir a paz. A paz sempre resulta de inúmeros esforços, de inúmeras gerações, que cultivam basicamente os mesmos sonhos e respeitam os mesmos valores.
Tem lugar quando encorajamos as pessoas, quando promovemos os valores culturais e éticos, as atitudes e práticas do bem comum. Muito se fala sobre as possibilidades de um mundo novo. Contudo, a construção de um novo mundo pressupõe que as pessoas sejam incentivadas a preservar seus valores culturais e éticos. Ora, o que se percebe sempre de novo é o retorno da mesma tentação de alguns grupos julgarem que o mundo está começando com eles. Ou seja, passam por cima da cultura, pretendem inventar novos parâmetros éticos. Com isso em vez de um mundo novo o que vai se desenhando no horizonte são os traços dos mesmos fracassos de outras tentativas semelhantes.