Diretor de filme sobre machismo que representa o Brasil no Oscar diz que quer ouvir a opinião dos homens

Karim Aïnouz, diretor do filme 'A Vida Invisível'. Foto: Diego Petri/Tribuna do Paraná

Na última quinta-feira (24), o Cine Passeio trouxe o longa-metragem que representa o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar de 2020 na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, A Vida Invisível. Com previsão de estreia no circuito comercial para o dia 21 de novembro, a obra tem direção do cineasta cearense Karim Aïnouz, conhecido pelos filmes Madame Satã (2002), O Céu de Suely (2006) e Praia do Futuro (2014).

O melodrama tropical é baseado na obra de Martha Batalha, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, e é estrelado por Fernanda Montenegro, Gregorio Duvivier e pelas estreantes Carol Duarte e Julia Stockler. O filme tem a mesma produção da cinebiografia Tim Maia – Não Há Nada Igual, do elogiado Me Chame pelo Seu Nome e do longa estrelado por Brad Pitt, Ad Astra – Rumo às Estrelas, do estreante Rodrigo Teixeira. O roteiro foi adaptado pelo escritor curitibano, Murilo Hauser.

A Vida Invisível conta a história das inseparáveis irmãs Eurídice e Guida que moram com os pais em um lar conservador. Ambientado no Rio de Janeiro, na década de 50, ambas têm sonhos: a primeira quer se tornar pianista profissional e reconhecida mundialmente e a outra deseja viver uma grande história de amor. Porém, ambas acabam sendo separadas pelo pai e forçadas a viver uma vida distante uma da outra. Sozinhas, elas irão lutar por um futuro melhor, além de se reencontrarem.

“Eu achei importante também fazer um retrato de uma geração que eu via pouco representado na indústria cinematográfica”

Em entrevista para o blog Não é Spoiler, o diretor Karim Aïnouz revela os bastidores do filme, critica o machismo e o patriarcalismo da época, a imagem da figura feminina na sociedade nos dias atuais e a surpresa de concorrer uma vaga ao Oscar.

Diego Petri: Como você ficou sabendo da obra de Martha Batalha?

Karim Aïnouz: O Rodrigo [Teixeira], que é o produtor do filme e é um amigo meu de muitos anos, a gente tinha feito um filme antes em 2011 [O Abismo Prateado], e a gente ficou algum tempo procurando obras literárias ou grandes reportagens que pudéssemos fazer juntos. E, então, ele me mandou um pdf, até quem leu foi a minha assistente de direção, Nina Kopko, e ela que disse que a história tinha muito a ver comigo. A Nina assistiu a um filme meu, que fiz em 1992, sobre a minha avó e as irmãs dela [Seams] e era um universo muito parecido. Ela me enviou o pdf e eu fiquei muito encantado, pois me lembrei dos meus irmãos, das minhas avós, das minhas tias, todas as mulheres da minha família. A Martha fez um relato muito bonito que eu achei que era só da minha família, mas que eu fui descobrindo aos poucos que fala de todas as famílias brasileiras. E eu achei importante também fazer um retrato de uma geração que eu via pouco representado na indústria cinematográfica brasileira e que estavam vivas ainda, entende? São mulheres hoje que tem seus 80/90 anos e ver o que elas passavam na época. O livro traz muito isso e foi o primeiro ímpeto que eu tive quando pensei em adaptar o romance.

DP: E a Martha Batalha já assistiu ao filme?

KA: Já, claro! A gente nunca se falou durante o processo de desenvolvimento do roteiro, mas nós nos encontramos logo que as filmagens acabaram. Ela mora em Los Angeles e veio para o Rio de Janeiro para lançar o seu segundo livro e foi ali que nós nos conhecemos. E foi muito bonito o encontro. Ela confiou plenamente na adaptação, assistiu ao filme quando estreamos no Festival de Cannes e adorou. Claro que ela entendia quais eram as diferenças entre a obra cinematográfica e a literária. Ela contou que se encantou com a diferença, já que no livro a história tem certa leveza, um humor sutil, e o filme mostra certa crueldade com as personagens, mas que ela achava essa adaptação muito bonita. Até na época ela citou que seus grandes autores favoritos, como [Anton] Tchekhov e [William] Shakespeare, que eram autores muitos cruéis com os seus personagens e nem por isso deixavam de mostrar a afeição neles. Teve um processo muito livre.

DP: O filme se passa grande parte na década de 50, numa época que não se discutia sobre empoderamento feminino, por exemplo. Como você vê essa história para as mulheres dos dias de hoje?

KA: Olha, eu acho que o filme faz duas operações, pelo menos é o que eu espero. A primeira é: a gente entender o quão duro é a condição feminina há tão pouco tempo. Você escolhia com quem se casava, mas você não escolhia se ficava com essa pessoa, não tinha divórcio. Naquela época, apenas 10% das mulheres faziam parte do mercado de trabalho formal. A maioria trabalhava em casa. O fato de você querer ter uma profissão, de ter uma voz, uma vida fora do ambiente doméstico era muito pouco provável. São coisas que parecem muito distante, mas estão muito próximas, são muito cruéis. Me interessava muito falar sobre isso e mostrar como essa condição mudou muito, atualmente as mulheres conquistam mais espaço, como por exemplo o divórcio, a entrada no mercado de trabalho, a própria vontade de escolher se quer ser mãe, então é importante falar disso, mas também poder falar sobre o que não mudou. Eu quero muito falar o quanto é distante, duro, o que as mulheres passaram há 50 anos, mas também falar da grande sororidade que tem no filme, que é um debate masculino também. O pai que separa as filhas, o médico que liga para o marido para falar da consulta da esposa, não há nem privacidade no ambiente médico-jurídico, o fato de uma mulher que cria o filho sozinha não poder nem viajar com o próprio filho para fora do Brasil, entende? Então, este filme, de um lado, fala de quantas coisas avançaram no ponto de vista da mulher, mas também eu acho que ele coloca muito em xeque o quão é tóxico o comportamento masculino e essa rede de falta de sororidade, na qual um pai destrói a vida de duas filhas. A que preço ele faz isso? Então, eu tento muito em falar isso e eu queria muito ouvir os homens com relação ao filme. Como este filme afetam os homens. Entende?

Karim Aïnouz, diretor do filme ‘A Vida Invisível’. Foto: Diego Petri/Tribuna do Paraná

DP: O filme conta a história de duas irmãs, ele traz um sentimento de esperança. Partindo deste ponto de vista particular, referente à história delas, de querer mudar, de se reencontrar, e indo para o ponto de vista universal, você acha que o povo brasileiro é esperançoso por mudança?

KA: Tem um amigo meu que um dia deu uma entrevista para uma revista, que é o autor daquele livro Sol na Cabeça, o Giovani Martins, um autor que eu adoro. E ele disse uma coisa que eu acho fascinante nessa entrevista. Ele disse: primeiro não existe democracia racial no Brasil, que é um mito. E a gente fala que o Brasil é um país machista, mas um país no qual 40% dos lares são liderados, mantidos e cuidados por mulheres, por que os homens foram embora, entende? Então, ele fala isso. Eu acho que, de um lado, o Brasil é um país machista sim, mas é um país mais matriarcal. Então, eu acho muito importante não deixar de acreditar na força dessas mulheres e entender que de fato como é que eu vejo o Brasil é isso. Até na tradição, né? Como é que um país pode ser tão machista e como pode ser tão matriarcal ao mesmo tempo? Como é que um país pode ter a maior Parada LGBT do mundo e ser o que mais mata gay no mundo, entende? Como pode ser o maior país com população negra fora do continente africano e se achar que é um país branco.

DP: As atrizes Carol Duarte e Julia Stockler revelaram que durante o processo de gravação houve vários momentos de improvisação, como isso ocorreu e ajudou na construção final do roteiro do longa, mudou muito?

KA: Eu vou, na verdade, improvisando a partir de uma base muito sólida. Nós improvisamos muito na pré-ação, a gente fez uma pesquisa grande sobre o centro de gravidade dramática das cenas, da própria ação do espaço que era muito parecida com teatro. Nas filmagens, existia ali um roteiro muito claro, mas eu estava sempre aberto sobre as mudanças que ocorressem ali fossem produtivas ou não. Então, era dando a liberdade de um escopo que era muito claro. Era muito importante que os atores soubessem qual eram as falas, mas se eles sentissem que eles tinham que mudar as falas aquele momento, certamente era bem vindo. Tinha muita improvisação durante os ensaios e eles podiam propor coisas. Então, houve um trabalho de colaboração entre os atores e muitas das falas a gente descobriu no processo de ensaio. A gente ensaiava, transcrevia e mudava os diálogos. Então, era um ensaio de preparação mais do que no set em si.

“Como é que um país pode ter a maior Parada LGBT do mundo e ser o que mais mata gay no mundo, entende? Como pode ser o maior país com população negra fora do continente africano e se achar que é um país branco”

DP: Mudando um pouco de assunto, deixando de lado o filme, vamos falar da sua carreira. Nos seus trabalhos anteriores, você trouxe personagens oprimidos, que vivem na escória da sociedade, são abandonados e angustiados com a vida, isso está presente em Madame Satã e O Céu de Suely, por exemplo. Quando surgiu a vontade de fazer filmes sobre eles?

KA: Eu acho que, assim, nenhum melhor material dramático do que personagem em crise. Aliás, o drama é feito assim e me interessa muito olhar para o personagem que tá em crise, porque ele é excluído, abandonado, por ser negado. Porque eu acho que é para este personagem que eu dedico minha vida. Eu acho que é um pouco de jogar luz nesses personagens que estão na sombra. Então, eu fico sempre pensando em cada filme que eu vou fazer que é isso, como é que a gente pode falar de quem está na margem, que está na situação periférica, mas que tem tantos direitos quanto você e eu que estamos numa situação de centro, entende? Eu acho que o cinema é um lugar onde a gente pode jogar luz em coisas que normalmente a gente não joga luz no cotidiano. Não só o cinema, mas a literatura sempre está falando de personagens que precisam de uma coisa, quer uma coisa, mas as quais não são permitidas terem aquilo. No meu caso, sempre tem uma conotação política, por exemplo, na época que eu fiz O Céu de Suely, eu estava interessado em contar sobre uma personagem que eu não via no cinema brasileiro, onde os homens vão embora, mas as mulheres não podem ir embora, porque tem filho pra criar. Então, no filme [O Céu de Suely], como é que as mulheres criam uma rede de sororidade, na qual a personagem deixa o filho com a avó e com a tia e vai trabalhar longe. Em Praia do Futuro, especificamente, eu queria falar do que era você ter que ir embora de onde veio para você ser o que quer ser, entendeu? Então, eu acho que é sempre olhar pra personagens que merecem ser lembrados e em momento de crises, seja através do abandono, ou através da diáspora, entende?

Karim Aïnouz, diretor do filme ‘A Vida Invisível’. Foto: Diego Petri/Tribuna do Paraná

DP: Sobre as premiações, você conseguiu levar o prêmio Um Certo Olhar no Festival de Cannes, um título inédito para o Brasil, e agora tem um filme representando o país na vaga no Oscar 2020. Como você reagiu a tudo isso?

KA: Olha, é incrível, porque primeiro em Cannes eu vejo que o prêmio lá foi não só do filme, mas também sobre a minha carreira de 30 anos no cinema. Eu acho que foi um prêmio celebrado no Brasil de uma maneira tão surpreendente pra mim. Parecia que a gente tinha ganhado a Copa, entendeu? Claro que eu fico muito orgulhoso de ter ganhado e ter representado o país nesta premiação e também. É claro que estar concorrendo a uma vaga no Oscar é muito importante. Não era uma coisa que estava no meu radar, mas que hoje em dia quando eu olho pra ele percebo que estes prêmios tomaram uma significação que eu nunca tinha visto. Todo ano, tem um filme brasileiro tentando uma vaga no Oscar, mas eu acho que a gente precisa tanto de provar que a gente tá brilhando, que a gente é forte, que estamos fazendo um trabalho cheio de dignidade. Então, eu acho que é um momento muito especial e que não é um trabalho que emergiu do nada, são anos e anos de trabalho. Se não fosse a gente, seria qualquer outro filme. Então é muito importante a gente levar qualquer filme que seja, que tivesse concorrendo um prêmio importante. O Oscar é também um prêmio de mercado. Eu fico muito feliz que a gente ganhou pela primeira vez e espero que seja a primeira vez para o Brasil ganhar uma estatueta. Mas antes de qualquer coisa, eu acho que, na verdade, é um prêmio que se a gente for indicado na categoria mesmo, é a confirmação de que a gente está no caminho certo. Se alguém acusar que estamos no caminho errado, tá errado. São eles que estão errados e não a gente (risos).

DP: Pra fechar, você considera o filme um ‘melodrama tropical’. Explique o porquê do gênero e quais foram às referências que você teve como embasamento estético?

KA: Ele [A Vida Invisível] é um folhetim que se passa nos trópicos, não é um folhetim que se passa no estado da Califórnia, na cidade da Suécia, nem nas ruas de Madrid, assim. Por isso que eu chamo ele de ‘melodrama tropical’. Sobre referências, eu achei que o filme devia passar no Rio de Janeiro, então uma coisa que é muito marcante lá é esta eterna crise entre a natureza e a urbanização, lá tem aquela floresta exuberante, úmida, com folhas grandes que adentram nas casas e na vida das pessoas. Então, isso é uma coisa muito importante pra mim. E era muito importante que as personagens irmãs vivessem na natureza e na civilização que tivessem depois separado as duas, então foi uma metáfora muito imediata que eu identifiquei na cidade do Rio, mas assim, que a gente tivesse um melodrama que não fosse puritano, que a gente pudesse estar numa situação de intimidade. Isso a gente vê até no melodrama de estúdio norte-americano, até mesmo com o Pedro Almodóvar. Depois que ele fez A Lei do Desejo, ele se tornou algo muito limpo. Eu acho que a umidade do trópico torna a gente muito mais fluída, as cores são muito mais forte. O verde da floresta é um verde quase elétrico. Então eu pensei em como fazer este gênero que é muito ligado no mundo e ser algo nosso, então me inspirei muito nos melodramas mexicano e egípcio que são onde tinham locais de cores muito fortes e que tinham uma certa particularidade e traduziram para um gênero que fossem só deles.

Lançamento oficial

Karim Aïnouz compareceu na pré-estreia do filme, que aconteceu na última quinta-feira (24), no Cine Passeio. O lançamento oficial de A Vida Invisível foi prorrogado. Originalmente previsto para chegar no dia 31 de outubro, a nova data ficou para 21 de novembro. Segundo a produtora FT Features e as distribuidoras Sony Pictures e Vitrine Filmes, a decisão de mudar a data visa ampliar a participação do diretor e do elenco nos eventos e atividades de lançamento por todo o Brasil e conciliar a agenda do cineasta em viagens internacionais em campanha pelo Oscar. A Amazon Prime Video adquiriu os direitos de reprodução do longa e irá lança-lo nos EUA em dezembro deste ano.

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