O lobo e o conto sem fim

Clarice Lispector começou a escrever um conto que não tinha fim. Por mais que ela tentasse dar um termo à história a trama fluía teimosamente para o infinito. Clarice contou esta história na última entrevista que deu, em 1977, e que foi reprisada há alguns meses pela TV Educativa.

Nela, Clarice fala pouco desta situação, já que ela nos diz mais com seus olhos amendoados, enigmáticos e tristes que hipnotizavam a todos. Quando o entrevistador perguntou se este conto ainda existia, ela não disfarçou a irritação. Confessou sem remorso que destruiu o calhamaço de tanta raiva que sentiu de se ver atrelada a uma história sem fim.

Clarice começou a escrever o conto quando era muito jovem, assim que terminou de ler o livro “O lobo da estepe”, do escritor alemão Hermann Hesse.  Eu fiquei tentando imaginar se foi o comportamento do alter ego da história, Harry Haller que poderia ter perturbado os seus pensamentos.

Harry Haller ora se considerava um lobo, ora um homem. Quando ele assumia um dos papéis o outro ficava como expectador.  Assim, se o homem tinha um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre que fosse, o lobo em seu interior arreganhava os dentes e escarnecia dele. Aliás, toda ação humana aos olhos do lobo era estúpida, vã, despropositada porque a um lobo o que importa é vagar pelas estepes, beber sangue e, de vez em quando, correr atrás de uma loba.

Quando conheci esta história quase entrei em parafuso. Era adolescente e li “O lobo da estepe” numa sentada. Cometi o grande erro de muitos fãs de Hesse: identifiquei-me com Harry Haller, reconheci-me no Lobo da Estepe, sofri com as suas dores e, como consequência, causei alguma preocupação aos meus pais.

Muito viveram esta experiência, tanto que as edições deste livro a partir de 1961 vinham acompanhadas de uma nota do autor, em que Hesse dava um puxão de orelha educado em seus fervorosos admiradores. Ele dizia que curiosamente os leitores mais “entusiastas e satisfeitos” com o livro eram justamente os que haviam captado apenas parte da mensagem. Ele insistia que além dos problemas da vida de Harry Haller, o livro também tratava de questões de espírito, com a afirmativa de um mundo de fé, que se opõem ao mundo sofredor do Lobo da Estepe. “O livro trata, sem dúvida alguma, de sofrimentos e necessidades, mas mesmo assim não é o livro de um homem em desespero, mas o de um homem que crê”, defendeu Hesse.

Se a nota do escritor alemão surtiu efeito ou não é uma incógnita, mas ele fez o seu papel. Hesse se mostrou zeloso com a forma que seus leitores absorviam seus escritos e esta preocupação aparece em uma das reflexões de Harry Haller no próprio “O lobo da estepe”: “Pensas nos teus leitores, nesses pobres pecadores e de livros roedores? E nos teus linotipistas, nos homens de curtas vistas, nos medianos artistas?”. Dava impressão que para Hesse era um peso ser tão cultuado.

Por ser uma obra tão emblemática “O lobo da estepe” é considerado o ponto alto do escritor alemão. No ver do eminente escritor Thomas Mann, contemporâneo e patrício de Hesse, “O lobo da estepe” como novela experimental não fica nada a dever ao famoso romance Ulisses, de James Joyce.

Clarice Lispector não disse se gostou ou não do livro. Revelou apenas que muitas vezes escolhia livros pelo título à medida que os achava interessantes. Clarice também disse que não fazia concessões na sua obra, mesmo quando a taxavam de ser incompreensível, hermética. “Eu não sou hermética porque eu me compreendo”, se defendia. Mas logo em seguida fazia uma ressalva: “Se bem que tem o conto ‘O ovo e a galinha’ que eu não compreendo muito bem”.

A descrição mais tocante que vi sobre a grande escritora brasileira foi a do poeta Ferreira Gullar relembrando o primeiro encontro entre os dois. Seu depoimento é definitivo: “Ao vê-la levei um choque. Seus olhos amendoados e verdes, as maçãs do rosto salientes, ela parecia uma loba – uma loba fascinante […] Imaginei que, se voltasse a vê-la iria, me apaixonar por ela.”

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