Vanessa é uma observadora do comportamento humano. Esta qualidade ajuda muito na sua profissão de professora, já que consegue ‘ler‘ seus alunos por comportamentos e opiniões e suas inclinações para este ou aquele assunto, até a apatia total para qualquer coisa. Às vezes desabafa: ‘Este ainda não despertou para a vida‘, relatando a indolência de algum pupilo, nas nossas longas e constantes conversas.
Lembro de uma história marcante que ela me contou uma vez, só que esta ocorreu fora dos muros da escola e teve a professora como testemunha ocular. O ano era 1999 e alguns versos assombravam crédulos e incrédulos. O nome de Nostradamus pairava na atmosfera, pela interpretação de suas centúrias, que na virada do calendário o ano zero decretaria o fim da humanidade. Pois foi no limiar desta época que numa noite que esperava o ônibus após um longo dia de aulas, presenciou um diálogo surreal numa estação-tubo perto do Portão. Estavam só a professora e o cobrador no tubo, cada um pensando com seus botões, quando de súbito surgiu um homem carregando um isopor todo carcomido. Era o vendedor de sanduíches e salgados. Pela forma que conversou com o cobrador, percebia-se que já eram velhos conhecidos.
O cobrador logo se atracou com um sanduíche, com aquelas mãos que manipularam dinheiro por horas. Quando chegou mais ou menos na metade do rango, o vendedor sapecou um comentário: – É, hoje vai acabar o mundo. – Diz que, né!, respondeu o cobrador e já emendou. – Quem falou isto mesmo? E o vendedor não se fez de rogado: – Um tal de ’Nostradêmis’. – ’Nostradêmis’?, estranhou o cobrador. E quis logo saber: – Quem foi ’Nostradêmis’? Aí também já era demais. O vendedor de salgadinhos espanou, mas foi na direção certa: – Ah, sei lá! Mas com certeza com esse nome não era brasileiro. – É, brasileiro não era, disse o cobrador. – Brasileiro se chama João, Pedro, Paulo… E outro não quis ficar para trás: – José, Raimundo, Severino. O cobrador voltou à carga: – Sebastião, Miguel, Mário, Joaquim, Antônio, Alfredo. E aquilo não parava mais. Pareciam que tinham engolido uma lista telefônica: – Manoel, Odorico, Roberto, Augusto, Luiz, Márcio. O cobrador ainda puxou pela memória: – Carlos, Osvaldo, ’Emersão’. Aí o vendedor atalhou: – Emersão, não? Emersão já é mais ’sofiticado’.
Neste ponto a conversa foi interrompida pelo ronco forte do motor do vermelhão. Não era o fim do mundo, mas era a deixa da professora. No trajeto para casa, ela não sabia se ria ou chorava ao lembrar os dois homens divagando sobre o assunto, atropelando a língua pátria. O curioso era que o objeto da discussão havia se perdido na nacionalidade do profeta. Depois imaginou como seria se os trabalhadores fossem pesquisar e descobrissem que o astrólogo e médico francês acertou várias de suas profecias? Previu as guerras mundiais, a ascensão de Hitler e o surgimento de Bin Laden, só para citar algumas. E o mais horripilante: Nostradamus previu a própria morte.
Felizmente, na questão do fim do mundo ele estava errado, mas Nostradamus continua nas rodas de conversas, encasquetando desde os trabalhadores mais humildes, até os cérebros privilegiados. Em 2012, ele voltou à tona: estudiosos ligaram uma profecia ao sucesso de Psy (o coreano do Gangnam Style) e o fim do mundo novamente. E em 2013, escritos do astrólogo indicariam a renúncia do papa Bento XVI. E segue o baile do Nostradamus.
*Miguel Ângelo de Andrade publica a coluna ‘Pelas ruas da cidade’ durante as férias de Edilson Pereira.