Maurinho não podia se mexer. Tinha sido imobilizado pelo que pareciam ser duas entidades do mal que escarneciam dele. Quando estava preso ali numa espécie de jardim deserto o tempo congelava para aumentar ainda mais o seu terror. As duas entidades assumiam formas de nuvens escuras e gravitavam no horizonte, dominando tudo ao seu alcance.
Quando teve este pesadelo na adolescência, Maurinho me contou que ficou noites sem dormir. Especialmente porque o sonho estava se tornando recorrente. Ele não entendia porque aquilo acontecia e se perguntava que tipo de interesse poderia despertar no sobrenatural. Disse que nunca brincou com estas coisas. Não acreditava em tudo o que lhe diziam, mas também não duvidava.
Como ele estava empenhado em falar sobre o assunto, perguntei o que as tais “forças do mal” comentavam sobre ele. “Coisas terríveis”, disse Maurinho, com a voz embargada. Em solidariedade ao sofrimento do meu amigo achei melhor não insistir. Mas depois de alguns minutos de silêncio ele começou a falar espontaneamente. “Eles não deixam que eu entenda”, explicou. Depois acrescentou: “Quer dizer, o contexto eu entendo, mas não consigo captar textualmente os diálogos. Acho que eles querem quebrar meu espírito. Aqui para eles!”, disse, dando uma banana aos seus algozes espirituais.
Pensei comigo que para alguém que estava com medo, Maurinho se mostrava muito destemido. Seus pais queriam levá-lo a um curandeiro, mas de uma hora para outra o tormento de Maurinho se foi. Começou do nada e terminou inesperadamente. Um mistério.
Não acredito que aquilo fosse invenção da sua cabeça. Poderia até ter floreado alguns detalhes, mas o seu desespero era genuíno. Essas coisas são impossíveis de fingir e eu tive uma prova de fogo disso anos mais tarde.
Lembro-me como se fosse hoje. Era uma noite de outono fria, de lua nova e todos em casa já dormiam. Lá fora havia um vento razoável fazendo o pé de Pitangueira, que ficava na janela do meu quarto, dançar de um lado a outro. Eu lia na cama uma revista e de repente tive uma sensação muito estranha. Veio um pensamento inesperado de que naquela noite o melhor seria ficar acordado. Não havia explicação. Entretanto, a mensagem era clara: se dormisse algo terrível poderia acontecer. Fiquei extremamente apreensivo com aquilo, mas não tive de tempo de refletir porque no instante seguinte adormeci de repente, como se caísse em transe.
Então apareceu uma figura medonha, um ser do Mal. Tinha quatro olhos grandes na testa e olhos nos joelhos também. Eram malévolos. Quando miravam demonstravam todo o desdém, o escárnio, o desprezo. Como se não bastassem os olhos assustadores, a figura era medonha e a pele parecia com a dos sapos.
Tal qual meu amigo Maurinho, eu também fiquei paralisado de medo. Mas o pior de tudo era que eu tinha consciência que era um pesadelo e eu precisava acordar, mas não conseguia. Quando o ser começou a falar eu vi a minha viola em cacos. Ele dizia: “Você pensa que é grande coisa, você não é de nada”. Eu não retrucava, até porque não podia nem falar, só queria acordar.
E o malévolo insistia: “Você não é de nada”! Bastou um gesto dele e eu comecei a flutuar sem controle pela casa. Percebi que sai do quarto e já estava na sala, próximo da porta que dava para rua. Àquela altura já estava completamente aterrorizado porque tudo o que eu tentava para me libertar não funcionava e parecia que fortalecia mais o ser de muitos olhos. Continuava flutuando puxado por aquela força do Mal. Quando estava prestes a deixar a nossa casa, lembrei que havia um grande quadro de Jesus Cristo no alto da porta da sala que a minha mãe havia mandado colocar. Consegui virar o corpo num esforço sobre-humano e bastou enxergar Jesus e aquela presença do Mal sumiu e eu caí no chão da sala.
Acordei no meio da noite, encharcado de suor e com o coração disparado. Pensei que não ia conseguir retomar o sono, mas fiquei tão cansado daquela “luta” que só fui acordar no dia seguinte. Não sei explicar o que foi aquele pesadelo. O fato &eacut,e; que nunca mais se repetiu, graças a Deus. Edgar Allan Poe, o notável escritor de contos tétricos, disse certa vez que “tudo o que vemos e parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho”. Se for assim, quando dormimos e sonhamos ficamos perigosamente ainda mais distantes da realidade.