Doutrinadores afirmam que a relação de consumo é a matéria-prima de aplicação da Lei 8.078/90 (CDC). Identificar seu conceito significa, objetivamente, encontrar o real campo de aplicação do CDC, ou seja, os casos práticos em que cabe aplicar a referida norma. Newton de Lucca, por exemplo, anota que o Código não se utilizou da expressão ato de consumo, ou negócio de consumo, ou mesmo contrato de consumo, pois necessitava de um conceito mais amplo para albergar maior proteção aos consumidores. Preferiu, então, relação de consumo. Roberto Senise Lisboa, o doutrinador nacional que mais se dedicou ao estudo deste conceito, diz que ?relação de consumo é o vínculo jurídico por meio do qual se verifica aquisição, pelo consumidor, de um produto ou serviço, junto ao fornecedor?. E acrescenta que ela tem como elementos subjetivos o fornecedor e o consumidor, como elementos objetivos o produto ou serviço e como elemento intrínseco ou causa determinante, a destinação final do fornecimento.

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Com o maior respeito ao eminente jurista recém-citado, temos uma visão diferenciada muito mais abrangente e capaz de melhor se coadunar com o que acontece no mundo dos fatos que o CDC veio reger e, principalmente, com o próprio texto da lei. Nossa concepção principia pela convicção de que a relação de consumo deve ser visualizada sob dois prismas:

a) o primeiro, já trabalhado pela doutrina, é o que podemos denominar de relações de consumo stricto sensu, com abrangência restrita às relações onde estejam presentes, concretamente, um fornecedor e um fornecimento para consumidor (destinatário final, adquirente ou utente). No âmbito desta dimensão estrita, podemos dizer que ?se caracteriza relação de consumo, sempre que pessoa (física, jurídica ou mesmo ente despersonalizado), tendo, precipuamente, intuito de habitualidade e ganho, forneça produtos ou serviços, a quem seja destinatário final dos mesmos?. Observação: utilizamos a expressão ?habitualidade? (e não ?profissionalidade?), pois o fornecedor pode ser esporádico e até ter outra profissão, mas sempre procura fornecer o máximo possível de vezes para conseguir vantagens maiores (mesmo que as vezes não consiga). Na mesma linha de pensamento, a palavra ?ganho? foi preferida a ?lucro?, pois este último liga-se a diferença entre custo e receita (lucro é estritamente comercial), deixando de incluir os contratos civis, tais como a prestações de serviços também usualmente fornecidas para consumidor;

b) o segundo, a que denominamos relações de consumo em sentido amplo ou lato sensu, engloba também as práticas de mercado que vão desembocar no consumo do produto ou serviço por parte de um destinatário final. O elemento fundamental, entretanto, está em que ao considerar-se essas relações como de consumo em sentido amplo, tem-se como requisito imprescindível que estejam sendo protegidos direitos dos consumidores. Ausente esse pressuposto, afasta-se a possibilidade de aplicação da legislação consumerista, considerando-se estes negócios jurídicos como sendo unicamente de âmbito da legislação comercial ou civil (mas não de consumo, seja em sentido amplo ou estrito). Então, apenas e tão-somente quando é para a proteção de interesse dos consumidores, trata-se de visualizar como relação de consumo em sentido amplo, todo contexto de práticas antecedentes que convergem para o fornecimento a destinatário final. Esta é a técnica preventiva destinada a evitar que a relação de consumo em sentido estrito – momento derradeiro do processo que vai da produção ao consumo possa ser mal construída e constituída já em seus procedimentos anteriores, vindo a chegar irremediavelmente deturpada e lesiva aos interesses dos consumidores. Este tipo de circunstância acontece, por exemplo, nas normas que regulam pesquisas e fabricação de remédios, bem como na fiscalização dos procedimentos industriais, contexto que começa muito antes da relação de consumo que envolve o consumidor que adquire ou utiliza o remédio comercializado na farmácia. Por evidente, não se pode esperar para tentar proteger o consumidor apenas quando se concretiza a relação de consumo em sentido estrito (aquisição na farmácia e consumo do remédio), devendo-se aplicar a legislação consumerista de proteção aos interesses dos consumidores, já nos primórdios da pesquisa, fabricação e circulação dos medicamentos, ou seja, desde o momento em que se inicia a relação de consumo em sentido amplo, conforme explicitamos. Inclusive, sob o ponto de vista legal, a utilidade dessa distinção sobressai principalmente no que pertine a aplicabilidade das normas, direta ou indiretamente, protetoras dos direitos dos consumidores. Observe-se que o CDC, não se restringe a regrar apenas as situações em que alguém adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final (relação de consumo em sentido estrito). Existem prescrições para situações (relações de consumo em sentido amplo) em que ainda não se identifica a presença de consumidor, tais como, dentre outras: a) o dispositivo que prevê a ?coibição e repressão eficiente de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais, das marcas e nomes comerciais e signos distintivos que possam causar prejuízos aos consumidores? (inc. VI, art. 4o); b) a vedação da publicidade enganosa ou abusiva (arts. 30 a 38); c) a proteção contra as práticas abusivas no mercado (art. 39), etc.

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Deste modo, conclui-se que o conceito de relação de consumo só pode ser concebido sob estas duas vertentes (ampla e estrita) cada uma com seus elementos, características e utilidades, fórmula que melhor se coaduna com a realidade fática e a legislação consumerista vigente.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em teoria econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.

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