Proprietário que não atender ao recall terá restrição para transferir seu veículo

Oscar Ivan Prux

O Brasil se tornou o país onde já se constitui em rotina as convocações de proprietários de veículos para que compareçam a uma concessionária com o objetivo de que se faça um recall destinado a reparar algum vício ou defeito (do veículo). Pressupõe-se, mas não existem estudos mais aprofundados para saber os reais motivos para esse fato. Apontam-se fatores como o desmazelo da indústria na fabricação desses bens, a possibilidade das montadoras estarem apressando demais os lançamentos sem testar os veículos adequadamente ou se elas estão fabricando produtos mais sofisticados e susceptíveis a apresentar problemas ou, ainda, se é uma questão de utilização de padrões de qualidade mais rigorosos e maior assunção de responsabilidade no pós-venda. Independente disso, fato é que as convocações para recall estão todos os dias sendo veiculadas na mídia, ora trazendo uma certa sensação de desconfiança para o consumidor, ora representando um fator de reposição da segurança. Entretanto, também não se tem estudos para aferir por quais causas nem todos os consumidores atendem ao recall, que mesmo tomando um certo tempo, é gratuito. A indústria tem o dever de produzir com qualidade, mas quando isso não acontece (e no mercado de consumo nunca se conseguiu perfeição), o recall representa um caminho viável para a solução do problema.

Pois bem, nesse contexto, a partir de setembro com a implantação do Sistema de Monitoramento Online de Recall, aquele proprietário que não atender ao chamado da montadora para realizar gratuitamente o conserto de seu veículo, automaticamente, terá restrição para a venda. Pode parecer estranho, pois há doutrinadores que entendem que o sistema de defesa do consumidor, capitaneado pela Lei 8.078/90 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor), pelo próprio nome que ostenta e por seus dispositivos, existe somente para conferir direitos destinados à proteção do consumidor e não para atribuir deveres a este. O argumento baseia-se, primordialmente, em que o propósito do legislador e o espírito da lei se concentra em proteger a parte mais vulnerável (o consumidor) na relação de consumo e ao atribuir-lhe deveres, esse objetivo estaria sendo desvirtuado. A questão é que as obrigações seriam como um edifício que projeta sua sombra: a responsabilidade (figura de linguagem criada por Larenz). Ou seja, em havendo atribuição de obrigações ou deveres para os consumidores, em tese, poderiam acontecer ações de responsabilização destes, movidas pelos fornecedores. Essa concepção não condiz com a realidade. Com base no Código de Defesa do Consumidor não se vê ações de fornecedores contra consumidores. Independente disso, ao consumidor cabe, por exemplo, agir de boa-fé e ser acessível às informações do fornecedor para saber utilizar o bem, de forma adequada e sem danos a si ou a quem quer que seja. Então, existem deveres para os consumidores, embora concordando com esses doutrinadores de que o CDC não veio para proteger o fornecedor em detrimento do consumidor, principalmente a ponto de, em prol do primeiro, ensejar a responsabilização deste último em razão de relações de consumo malsucedidas. Observe-se que mesmo merecendo recriminação qualquer ação de fornecedor contra consumidor com base no CDC, nada impede que o consumidor tenha restrições em consequência de não ter feito sua parte para o equilíbrio e a harmonia na relação de consumo (ex.: não poder reclamar se evitou receber informações ou utilizou o produto de forma não recomendada). Se no âmbito individual, a pessoa pode escolher não zelar pela sua segurança, quando a questão envolve segurança coletiva isso não é permissível, pois é importante ressaltar que a proteção dos consumidores é regrada por legislação de ordem pública e interesse social. Nunca é demais rememorar que a indústria tem o dever de produzir com qualidade, mas se isso não aconteceu e foi ofertado um recall, sob o ponto de vista jurídico, o interesse coletivo deve prevalecer impondo-se restrição ao consumidor quando tentar transferir a propriedade de seu veículo (aliás, até para sua própria segurança, ele nem deveria utilizar um veículo com vício ou defeito). E esse procedimento está previsto para começar em pouco mais de dois meses. Com certeza surgirão ações judiciais questionando a constitucionalidade da norma estabelecendo essa restrição, mas o interesse coletivo respaldado pela ordem pública e o interesse social justificam que ela tenha sua regularidade reconhecida e prevaleça em proveito da segurança dos consumidores e da população em geral.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em teoria econômica, mestre e doutor em direito. Coordenador do curso de direito da Universidade Norte do Paraná.

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