Diz antigo ensinamento versado na área jurídica, que no direito positivo o legislador ?não joga palavras ao vento? e que não há princípios de qualquer sistema ou microsistema que possam se restringir unicamente ao campo teórico. Os princípios, como verdades fundantes, implicam em aplicação prática que concretize seus objetivos. Este o sentido que se deve impelir ao princípio da harmonia nas relações de consumo, previsto no inc. III, do art. 4.º, da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).

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Consumidores e fornecedores são os atores de um grande enredo social pelo qual todos buscam o bem-estar previsto como ideal em nossa Constituição Federal. Embora as posições e características diferentes de cada um e o fato de que sempre podem surgir algumas divergências até naturais no dia-a-dia, a realidade demonstra que os interesses desses artífices das relações de consumo, nem por isso necessitam ser conflitantes. Os consumidores merecem proteção, do mesmo modo que precisam dos produtos ou serviços que possam satisfazer suas necessidades para alcançar uma vida digna, pois sem os referidos bens até a mera sobrevivência se tornaria impraticável, principalmente nos grandes centros urbanos. De outro lado, os fornecedores desejam e merecem poder realizar e evoluir suas atividades profissionais e empresariais e, principalmente, conseguir renda capaz de custear seus próprios projetos e gastos pessoais. Note-se que, se o fornecedor pode ser identificado parte do dia na sua atividade profissional (sendo fornecedor), na verdade, consumidor ele sempre o é, pois essa é a característica que assemelha a todos os seres humanos, do nascimento até o fim de sua vida.

A proteção do consumidor é de ordem pública e interesse social e isso por si só a justifica, mas é relevante que ela seja compatibilizada com os interesses legítimos dos demais participantes das relações de consumo e mesmo com os interesses de todo o restante da sociedade, pois estes negócios jurídicosespraiam conseqüências inclusive para terceiros. A estrutura social funciona como um todo e não só com consumidores ou apenas com fornecedores, de modo que não é viável permitir-se que alguém entrave o desenvolvimento (pessoal ou empresarial) que gera produtos ou serviços a serem consumidos pela população, assim como, essa atividade, não pode ser fonte de lesões a quem, na qualidade de consumidor, necessite desses bens para a satisfação de suas necessidades (individuais ou componentes do próprio bem-estar social coletivo). Assim, defesa do consumidor e proteção da livre iniciativa, devem coexistir sem inibir ou inviabilizar as atividades profícuas para o progresso social como um todo.

Consoante esta conjuntura, então, as relações de consumo são campo fértil para aplicação da concepção pós-moderna de que os contratos de consumo devem ser acordos de solidariedade, onde a boa-fé objetiva prepondere, afastando fatores de discórdia. E quando as controvérsias forem inevitáveis, elas devem ser superadas com a utilização dos instrumentos apresentados ou facultados pelo CDC como, por exemplo: a) as possibilidades ensejadas pela celebração de convenções coletivas de consumo, ótimo instrumento para solucionar eventuais divergências, compor interesses e gerar novas formas de colaboração (art. 107, do CDC); b) o aproveitamento dos mecanismo de solução de litígios (inc. V, do art. 4.º, do CDC); c) e até, com a utilização em prol dos fornecedores, da benesse prevista no inc. I, do art. 51, do CDC, quando em situações justificáveis e tratando-se de consumidor pessoa-jurídica, é autorizada a limitação da indenização como forma de não-inviabilizar-se a atividade do fornecedor, pois a supressão deste poderá desequilibrar o mercado (levando para um oligopólio ou monopólio na oferta do produto ou serviço), prejudicando o conjunto maior de consumidores. O foco, portanto, deve ser a compatibilização de interesses entre consumidores e fornecedores através de recíproca atuação com características marcantes de lealdade, transparência, solidariedade, proteção da confiança do outro contratante e, portanto, de conduta contributiva para um mercado de consumo permeado de harmonia.

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Em paralelo, observe-seque a defesa do consumidor e a livre iniciativa, compõem, em igualdade de condições, os princípios em que se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sendo que, o legislador integrou este contexto, concomitantemente: a) princípios destinados à propiciar a todos uma existência digna e com justiça social; b) os objetivos, da proteção da livre iniciativa e da busca do pleno emprego (que só viabiliza-se pelas atividades empresariais, incluindo as dos fornecedores). Assim, de forma explícita no CDC (e implícita na nossa Carta Magna), a harmonização das relações de consumo foi inserida como princípio, de modo a instaurar um regime de convivência e integração profícua de interesses, pois naquilo que é substancial, tem-se que o bem-estar social e os interesses finais dos consumidores e dos bons fornecedores, acabam tendo enormes pontos de coincidência. E mais, quando corretamente compatibilizados contribuem para o desenvolvimento econômico e tecnológico, contexto que deve ser permeado de boa-fé e equilíbrio como forma de viabilizar os princípios constitucionais em que se funda a ordem econômica.

Conclui-se, então, que o melhor caminho é evitar-se radicalismos em prol de qualquer das partes, seja o fornecedor, seja o consumidor, adotando a prática do princípio da harmonização nas relações de consumo como a forma mais racional para ensejar a melhora da nossa qualidade de vida e conseqüente bem-estar social.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.

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