Pode ser permitido o fornecimento de produtos

Oscar Ivan Prux

Existe em meio a população, a noção de que produtos ou serviços nocivos ou perigosos devam ser todos coibidos/banidos e não possam fazer parte de fornecimentos em relações de consumo. Não é verdade! A realidade dos fatos mostra que todo produto ou serviço contém latente alguma característica implicadora de risco ao consumidor, sendo que eliminar esse risco significaria esvaziar o mercado de fornecimento para destinatários finais. Não há como ignorar que os produtos e serviços incorporam certo grau intrínseco de perigo. Imaginemos um simples lápis, objeto de uso tão corriqueiro e quase inofensivo para adultos, mas que quando em mãos de uma criança de dois anos, potencialmente pode transformar-se em algo contundente capaz de colocar em risco a integridade física dela. Consoante essa conjuntura inexorável, o próprio Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90), ao prescrever providências específicas que os fornecedores devem tomar nos fornecimentos, implicitamente permite que também os produtos e serviços com algum grau de nocividade ou periculosidade subsistam nas relações de consumo, conforme se pode observar pela leitura atenta dos artigos 8, 9 e 10. O que o Código coibe, é o risco evitável, que é descendente direto da nocividade ou periculosidade que ultrapassa limites que justifiquem sua aceitação. O Ministro Antônio Hermen de Vasconcellos e Benjamin (in “Comentários ao Código de Proteção do Consumidor”, ed. Saraiva), através de didática classificação, teceu inesquecíveis considerações no que refere à existência de três tipos de periculosidade, denominadas respectivamente, de: a) inerente; b) adquirida; c) exagerada. Segundo esta classificação (na qual igualmente pode ser incluída a nocividade como forma de periculosidade), tem-se as duas últimas como inaceitáveis no mercado, a ponto de merecerem automática coibição e propiciarem ensejo às correspondentes indenizações que se oportunizarem. De modo completamente diverso, a primeira delas (inerente), devido as suas características peculiares, insere-se naquelas modalidades tacitamente permitidas sob determinadas condições. Mas quais exatamente são os contornos dessa periculosidade (e até nocividade) que foge ao ideal de segurança absoluta e remanesce permitida pelo Direito do Consumidor?

A periculosidade inerente, também chamada de periculosidade latente, é aquela natural, previsível e absolutamente necessária à existência do próprio produto ou serviço. Não há como dissociá-la dele sem levar à prejuízos notórios para o objetivo do fornecimento. Tentar restringi-la pode implicar na eliminação gradual da própria característica que proporciona a eficiência do fornecimento, assim como, eliminá-la pode representar a própria supressão de toda utilidade do produto ou serviço. Não deixa de ser periculosidade, mas é recebida como normal, uma vez que inafastável para se poder obter os benefícios do fornecimento, benefícios esses que, naturalmente, devem compensar tolerá-la ou suportá-la (algo como os efeitos colaterais de um remédio indispensável para o paciente). Paralelamente, ela deve ser previsível, seja porque o consumidor a conhece e está acostumado com ela como que fazendo parte do produto ou serviço, seja pelo fato de que ela tenha sido, de alguma forma, levada ao seu conhecimento (do consumidor). A informação prévia alerta o consumidor e propicia que ele não seja surpreendido com os efeitos dessa periculosidade latente, inclusive podendo tomar providências antecipadas para mitigar ou até eliminar as más conseqüências dela. Neste caso, observe-se que assim como a periculosidade desarrazoada, a ausência de informação pode transformar uma periculosidade inerente, em periculosidade adquirida ou exagerada, levando a que os danos (e riscos) por ela gerados impliquem para o fornecedor em deveres de abstenção e de indenizar pela falta que resultou no mau fornecimento do produto ou serviço. Note-se que o consumidor costuma aceitar a periculosidade inerente, tendo em vista que já a considera quando da busca e contratação do fornecimento. Ele não vê sua legítima expectativa arranhada e nem se sente lesado, de modo que o CDC se coaduna com esta circunstância.

Há consciência geral de que a técnica não tem condições de nos proporcionar segurança absoluta em todos os tipos de fornecimentos. Existe permanente evolução tecnológica, mas em qualquer produto ou serviço sempre remanesce alguma periculosidade inerente, mesmo que residual (algum resquício de risco). Por isso, principalmente levando em conta seu grau menor, o Direito do Consumidor resigna-se quanto a ela, em tácito reconhecimento de sua intrínseca inevitabilidade (é possível controlar o efeito, mas não erradicar previamente a característica originária). Como exemplos comuns que destacam essa circunstância, podemos apontar, dentre outras situações: a) certas cirurgias necessárias ao consumidor, as quais só podem ser feitas com incisões que não deixam de ser perigosas; b) o transporte aéreo ou terrestre, que sempre apresenta algum risco de acidente; c) a faca, utensílio que oferece risco, mas se não cortar perde a utilidade. Assim, a questão está em manter sob controle esses riscos inexoráveis. Não é uma situação estática, pois segue se modificando conforme os progressos da ciência (note-se que, inerente, é somente aquela periculosidade que a técnica ainda não consegue viabilizar que seja erradicada dos fornecimentos). Conclui-se, portanto, que a periculosidade latente pode ser objeto de tolerância inevitável, mas não de condescendência e resignação, visto que para a proteção dos consumidores, deve se tratar de um estágio passageiro na história de toda e qualquer espécie de produto ou serviço.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.