Quando a sociedade, através de seus legisladores, opta por instituir uma norma legal, não se limita a proscrever as condutas que desejar coibir, mas também indica a forma como considera ideal às pessoas físicas e jurídicas se portarem individual e coletivamente. Ou seja, não se restringe a coibir/reprimir, mas também aponta, incentiva e impele os comportamentos que julga melhores como forma de contribuir para o progresso e desenvolvimento social. Consoante este desiderato, o art. 4.º, do CDC, apresenta como idéia central, o dever de qualidade, inclusive prescrevendo que a Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, no que tange a proteção da saúde, segurança e interesses econômicos, bem como, para a melhoria de sua qualidade de vida. A imposição – como dever de ordem pública e interesse social – da qualidade nos fornecimentos (tomada em sentido amplo), provocou algumas críticas de doutrinadores que consideravam inviável aplicar este princípio em um país ainda não-desenvolvido. De fato, a perfeição nos fornecimentos nem sempre é possível, até por conta de que as técnicas evoluem continuamente. Todavia, se impossível é a perfeição, de outro lado, muito alcançável é fornecer dentro de padrões compatíveis com os já obtidos pela ciência e nossas condições sociais.
O tempo foi o senhor da razão para, desde a aprovação da Lei 8.078/90, demonstrar o quanto esta prescrição foi construtiva no sentido de melhorar a qualidade dos fornecimentos de produtos e serviços. Note-se que no CDC ela (qualidade) principia nos deveres pré-contratuais (espécie de implied warranty ou garantia implícita de qualidade) que o fornecedor tem de cumprir quando se propõe e assume ser fornecedor e adentra o mercado nesta condição. Mais ainda, nos contratos que realiza até o encerramento completo de seus deveres pós-contratuais. Observe-se que o CDC é significativamente expressivo ao determinar verdadeira intervenção do Estado na economia, quando, também como princípio, coloca que deve haver ação governamental direcionada para proteger os consumidores, principalmente por providências destinadas a garantir que no mercado estejam apenas produtos e serviços com padrões adequados de qualidade (art. 4.º, inc. II, letra ?d?). E, no sentido de amparar o consumidor com diversos instrumentos protetivos, quando inclui ao Estado o dever de propiciar incentivo para que os próprios fornecedores possam estabelecer meios eficientes de controle da qualidade e segurança dos produtos e serviços (art. 4.º, inc. V).
A análise dos dispositivos da Lei 8.078/90 (CDC) mostra exemplos evidentes de como ela labora, dentre outras, com as noções como defeito, vício, impropriedade e inadequação, tratando de cercear as más condutas, coibir a falta de qualidade e induzir para o bom fornecimento capaz de cumprir com esse dever de qualidade. Os artigos 18 e 20 (CDC) são enfáticos ao atribuir para o fornecedor, a responsabilidade civil (independente da penal que também exista) pelos vícios de qualidade dos produtos e serviços, desde que estes os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, bem como, quando haja disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária. No mesmo sentido, os citados artigos igualmente seguem na mesma linha mencionando que são impróprios aqueles que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam ou que não atendam as normas de prestabilidade. Ou seja, quando retira do fornecedor a disponibilidade da garantia, a legislação faz por indicar-lhe que o caminho é fornecer com qualidade, pois o fornecimento defeituoso ou viciado é coibido e gera responsabilização. Nem mesmo à ignorância por parte do fornecedor, sobre os vícios de qualidade por inadequação, é suficiente para eximi-lo de responsabilização (art. 23, do CDC), o que deixa nítido que o dever de qualidade no fornecimento independe de conhecimento ou conscientização efetiva do fornecedor, já que o acompanha implicitamente em todas e quaisquer ações do fornecimento. Na mesma trilha, o art. 24 afirma que a garantia legal de adequação do produto ou serviço não depende de termo expresso, sendo vedada à exoneração contratual do fornecedor. Ou seja, que sua inércia em fornecer o termo de garantia ou mesmo seu desconhecimento da falta de qualidade, não são capazes de eximi-lo, pois a lei lhe inibe tentar exonerar-se por desconhecimento ou estipulação de cláusula contratual prejudicial a esse inerente dever de qualidade. Integrando este raciocínio, acrescente-se o fato de que o art. 50, do CDC diz que a garantia contratual é complementar a legal, de onde se pode concluir que, embora a primeira (garantia comercial) seja voluntária e disponível, em sentido inverso, à segunda (garantia legal), formada por disposições expressas e implícitas na lei, são inarredáveis. Para o fornecedor, não há, então, a possibilidade de descomprometer-se com a qualidade do que coloca no mercado, desde o momento em que produz até depois do consumo. Por derradeiro, é preciso compreender que embora a importância da qualidade dos fornecimentos, aparente dizer respeito apenas e mais diretamente ao adquirente do produto ou serviço, esta concepção não é completa. Em verdade, visualizando-se em sua real dimensão, ela se mostra fundamental para a qualidade de vida das pessoas, incluindo o bem-estar próprio e o progresso social. O que nos permite afirmar que este princípio da qualidade (oriundo da teoria com o mesmo nome), é pilar essencial do microsistema constituído pelo CDC.
Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.