O princípio da dimensão coletiva

O Direito Privado foi basicamente estabelecido para regular as relações entre os particulares, mas embora o integre, a Lei n.º 8.078/90 (CDC) é um micro-sistema que tem peculiaridades próprias, em especial por ser de ordem pública e interesse social. Há uma dimensão coletiva em toda relação de consumo, vez que esta supera o âmbito restrito as partes envolvidas e espraia conseqüências para um universo muito maior de pessoas.

Em seu livro ?A política legislativa do consumidor no direito comparado?, Miriam de Almeida Souza, refere com afirmação lapidar, que o consumo não é mais um ?fato privativo?, mas um ?fato público?. E acrescenta que a tutela do consumidor já é uma exigência generalizada e não apenas de foco individual. O consumidor deve ser visto como classe social, merecendo tratamento que, sem esquecer o aspecto individual, atente para o aspecto coletivo imanente às relações de consumo. Inclusive, porque a necessidade do consumidor naquele consumo tipificado como ?social?, nem sempre pode ser satisfeita apenas por meio de uma demanda individual, mas só em termos mais amplos. Como exemplo, se pode citar as demandas por transportes, educação escolar, etc., demandas estas muito ligadas a direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos. E sem afastar-se do nível coletivo, porém em aspectos mais setorizados, tem-se que considerar as repercussões que algumas legislações e sentenças judiciais reiteradas provocam em determinados setores da economia. Quando o agente econômico não suporta o custo das decisões judiciais ou da benesse estabelecida por alguma nova norma favorável ao consumidor, sua tendência é repassar este aumento de custo para os preços dos produtos ou serviços que fornece ou, então, retirar-se do mercado. Em outras palavras: ou os demais consumidores contribuem para sustentar o aumento de custo pagando preços maiores, ou o produto ou serviço deixa de ser fornecido no mercado. Exemplo temos no verdadeiro sumiço que está acontecendo nas opções de planos de saúde individuais tradicionais. A maioria das operadoras está se retirando do mercado de planos individuais e passando a ofertar quase que unicamente planos empresariais, menos sujeitos a controles de reajustes pela ANS, forma de, com aumentos maiores, suportar o custo das decisões judiciais que tendem cada vez mais a favorecer os pleitos de consumidores. Independente de seu aspecto moral, o fato é que o fenômeno da internalização é inerente a atividade econômica, seara na qual, em primeiro lugar, existe a busca do agente econômico em manter sua viabilidade, e é muito difícil que uma nova lei ou decisões judiciais, consigam revogar leis econômicas que existem desde o início da civilização. Por mais que se reconheça o quão importante e valioso é proteger o consumidor, notoriamente a parte vulnerável nas relações de consumo, é importante agir com equilíbrio, pois como disse Flávio Galdino ?direitos não nascem em árvores? (in ?Introdução à teoria dos custos dos direitos?). Há, portanto, uma inevitável repercussão coletiva neste contexto em que os direitos dos consumidores estabelecidos para atender necessidades ilimitadas, devem ser compatibilizados com os recursos limitados do mundo real.

Comprovando a existência dessa dimensão coletiva que é irradiada por toda relação de consumo, tem-se a proteção de todos os envolvidos direta ou indiretamente em qualquer relação de consumo mal-sucedida, sistemática estabelecida no CDC através dos arts. 2.º, 17 e 29, conferindo legitimidade ativa para o consumidor nato (adquirente ou utente) e para os consumidores equiparados (coletividade de pessoas, vítimas do evento ou pessoas expostas à prática). Acrescente-se, também, o fato de que, quando um fornecedor desrespeita direito do consumidor e não sofre sanção, não se preocupa com os defeitos ou vícios de seus produtos ou serviços e tende a se comportar da mesma maneira com outros milhares de consumidores, repetindo a fórmula ilicitamente vantajosa. Ou seja: generaliza a má-prática.

Embora o CDC, não faça menção textual a um princípio da dimensão coletiva, sua existência é simples de constatar, igualmente em vários dispositivos: – o art. 1.º, que diz serem de ordem pública e interesse social todas as normas inseridas no código; – os arts. 9 e 10, que determinam providências e coibem a colocação no mercado de serviços ou produtos que apresentem alto grau de nocividade; – os arts. 30 a 54, que trazem a proteção contra práticas e cláusulas abusivas; – os arts. 61 a 80, destinados a proteção social contra crimes perpetrados no mercado de consumo; – e, arts. 81 a 104, que regram a defesa de interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos.

Nenhuma relação de consumo, tanto faz seja bem ou mal-sucedida, encerra-se completamente isolada e enclausurada apenas em seu contexto. Vivemos numa sociedade de fornecimentos de massa e toda relação de consumo é similar a muitas outras, de modo que não existe sozinha e nem se pode considerar que suas conseqüências ficam restritas às partes diretamente envolvidas. Assim, é fundamental que Juízes, Promotores, Advogados e quem mais lida com causas de consumo, percebam que o encaminhamento que se der ao conflito individual, fatalmente condicionará outros comportamentos no mercado. É essencial, então, não buscar a solução que, restritamente, contemple apenas a relação individualizada, satisfazendo a parte considerada com o bom direito, mas que exista igual e até maior preocupação, inclusive no longo prazo, também com a coletividade de consumidores que pode acabar indiretamente atingida por suas repercussões. Esta a única forma de fazer-se justiça, seja judicial ou extrajudicialmente.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.