O princípio da boa-fé nas relações de consumo

Desde a antiguidade, a boa-fé sempre teve reconhecida sua importância para as relações sociais, mas este destaque foi revigorado com o advento do Código de Defesa do Consumidor e do novo Código Civil. A vida em sociedade é naturalmente árdua e eventualmente conflituosa, sendo a boa-fé, importante contributo para superar estas vicissitudes, algumas naturais, outras provocadas pela ignorância ou má índole de certas pessoas. Neste contexto, cabe a boa-fé o papel de verdadeiro vetor indispensável para as condutas em sociedade, em especial nas relações de consumo, considerando-se a força econômica do fornecedor e a reconhecida vulnerabilidade (ou mesmo, hipossuficiência) do consumidor no mercado. E esta característica de imprescindibilidade mais se acentua tendo em vista a dimensão coletiva que permeia as relações de consumo, estabelecidas legalmente como de ordem pública e interesse social.

A doutrina jurídica tem se debruçado em estudar a boa-fé, tanto devido a sua inscrição no direito positivo nacional, quanto em razão dos fatos demonstrarem que nenhum mercado de consumo pode ser profícuo, equilibrado e com relações negociais justas quando seus agentes deixem de ser instados e compelidos a atuar de boa-fé. Na relação de consumo, a noção de que a parte pode resumir-se a cumprir somente o que está escrito no instrumento contratual (que, muitas vezes, pertence a contrato de adesão) revela-se incompleta e insuficiente. Há deveres anexos de conduta que são de ordem geral e inafastáveis por se tratar de matéria de ordem pública. O instrumento contratual não é apto para prever todas as situações que podem acontecer no relacionamento das partes e no mercado. Esta realidade fez evoluir a compreensão do que precisa ser a boa-fé nos tempos atuais. Há que se ultrapassar o entendimento tradicional que aqui representamos pela palavra de um dicionarista consagrado como De Plácido e Silva, que disse: ?Sempre teve boa-fé no sentido de expressar a intenção pura, isenta de dolo ou engano, com que a pessoa realiza o negócio ou executa o ato, certa de que está agindo na conformidade do direito, conseqüentemente, protegida pelos preceitos legais. Dessa forma, quem age de boa fé, está capacitado de que o ato de que é agente, ou do qual participa, está sendo executado dentro do justo e do legal?.

Ora, a simples concepção interna de estar atuando segundo o direito posto – a que chamamos boa-fé subjetiva -mesmo não devendo ser simplesmente ignorada, não pode mais ser considerada suficiente para as relações de consumo operadas no século XXI. Existe notória insuficiência em aceitar somente o elementar estado de consciência (boa-fé subjetiva) derivado de conhecimento que pode ser lacunoso e de cunho altamente subjetivo. Nos tempos atuais, o mercado apresenta relações de consumo cada vez mais complexas e permeadas de sutilezas engendradas pelos fornecedores, que com seu marketing agressivo e engenhoso buscam intensamente consumidores para seus produtos e serviços. O certo é que a relação de consumo pressupõe, em especial para o fornecedor que é quem dita as regras do fornecimento, o cumprimento de deveres anexos de conduta, tais como atuar com honestidade, probidade, lealdade, transparência e pureza de intenções em suas relações negociais. Estes deveres, que compõem os elementos da boa-fé objetiva, mostram que ela é um padrão de comportamento (um standard de conduta) que só pode ser cumprido pela exteriorização de uma postura exemplar na relação de consumo e não mais pela mera sensação interior de estar agindo segundo o direito.

O princípio da boa-fé é suficiente para superar a aplicação da autonomia da vontade entre os contratantes. Inclusive, o autêntico sentido material da boa-fé nas relações de consumo (sentido amplo e sentido estrito), só pode ser realmente verificado levando-se em conta sua exteriorização em casos concretos, em todas as fases de relacionamento no mercado. Exemplo disso, temos quando o CDC coíbe: – conforme o art. 37, que seja veiculada publicidade enganosa ou abusiva (proteção na fase pré-contratual); – segundo o art. 51, que cláusulas abusivas gerem efeitos no contrato (proteção na fase contratual); – conforme o art. 10, parágrafo 1.º, o dever do fornecedor avisar as autoridades competentes e, principalmente aos consumidores, quando, depois da colocação do produto no mercado e mesmo que ele já tenha sido utilizado (caso de remédios), descubrir periculosidade que antes desconhecia (proteção na fase pós-contratual). Na atuação do fornecedor, então, não basta a isenção de ardis, sutilezas, artimanhas e práticas ou cláusulas abusivas destinadas a lesar o consumidor. É imperioso que exista o sentido exteriorizado e efetivado de proteger a confiança do consumidor, a ajuda para que este adquirente do produto ou serviço consiga retirar do contrato sua utilidade melhor, além da postura honesta, proba, leal e transparente. Qualquer desvio do referencial estabelecido marca como ilícita e reprovável a atitude tomada. Assim, a boa-fé configura-se na mais significativa expressão prática de valores e princípios maiores que devem nortear as relações de consumo. No convívio social, incluindo este tipo de relações negociais, é de se esperar que todos se portem com a índole descrita e referenciada tradicionalmente como sendo a do ?bonus pater familiae? (o correto e zeloso bom pai de família ao estilo rememorado na história da Roma antiga), concepção coincidente com a que impregna o espírito ideal de todo o sistema jurídico. Deste modo, a boa-fé liga-se diretamente a própria validade e justificação da existência do direito, do qual pode ser considerado verdadeiro princípio geral que o CDC veio muito bem expressar.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.

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