Oscar Ivan Prux
As condições sociais impõem que se compatibilizem os interesses empresariais (livre iniciativa, livre concorrência, proteção das marcas, etc.), com a preservação do meio ambiente e respeito aos direitos dos consumidores.
Diz o artigo 170, da Constituição Federal que o fundamento da ordem econômica visa proporcionar à todos uma existência digna. E existência digna, pressupõe respeito a certos valores de realização pessoal e condições inerentes a qualidade de vida, fatores indispensáveis para propiciar bem estar individual e coletivo, sempre tendo o ser humano como razão maior da estrutura social.
Com base nessas premissas, é que se deve analisar sob o ponto de vista jurídico, a situação daqueles que têm como trabalho, consumir produtos fabricados pela indústria do tabaco. Para as empresas, eles se resumem simplesmente em mão-de-obra com encargo de provar e dizer sobre a pretensa qualidade dos produtos que saem da linha de produção, tal como ocorre em outros segmentos industriais. Em relação à indústria do cigarro e a problemática inerente a saúde de quem fuma, trata-se de questão que não é nova e várias ações já houveram, seja daqueles que se identificaram como consumidores, seja de ex-provadores que na condição de trabalhadores nessa função, acabaram se viciando, perdendo a saúde e, finalmente, a vida.
Entretanto, ela ganha destaque por conta de que, em ação judicial que tramita no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ), movida pelo Ministério Público do Trabalho, a Souza Cruz obteve uma liminar que lhe dá direito a continuar utilizando em seu setor dito de “controle de qualidade”, funcionários encarregados de provar seus cigarros. O fundamento centrou-se no argumento acatado de que a questão da saúde do consumidor fumante foge à competência da Justiça do trabalho, sendo que a empresa desenvolve atividade lícita no País e nesse contexto, ao ser impedida de realizar, por meio de empregados provadores de cigarros, a avaliação da qualidade do bem por ela produzido, certamente seria prejudicada quanto à questão da livre concorrência, na medida em que as outras empresas do mesmo ramo não foram acionadas pelo Ministério Público do Trabalho.
Em primeiro lugar, assegure-se o respeito a qualquer decisão judicial, mas mesmo considerando a fundamental importância dessas decisões para providências urgentes, é impressionante como as liminares têm servido para propiciar absurdos. De um modo geral, sendo a liminar uma decisão provisória que pode ser revogada ou modificada a qualquer momento, a par das situações em que ela cumpre a função para a qual foi instituída, não é raro se observar casos em que é utilizada por alguns Magistrados como mero expediente sutil para “protelar” o real enfrentamento da questão posta em Juízo, assim como, vir dotada de um certo grau de descompromisso com os resultados dessas decisões. Em segundo lugar, é até irônico falar em qualidade de cigarros que comprovadamente fazem mal para a saúde, bem como, tratar com preceitos altruístas um tipo de indústria que já deveria ter sido banida do país, pois somente se mantém devido a gerar grande soma de impostos, financiar campanhas de políticos influentes e contar com a tolerância de quem poderia mudar esse quadro. Em terceiro lugar, advirta-se que no caso desses provadores, ao leigo ou ao jurista menos atento, pode parecer que estamos tratando de uma questão de Direito do Trabalho, naturalmente afastada do Direito do Consumidor. Isso não deixa de ser verdade, na medida em que a Justiça do Trabalho deve se preocupar com a saúde do trabalhador. Entretanto, tal circunstância não justifica afastar a incidência de preceitos atinentes ao Direito do Consumidor. As Justiças especializadas não estão jungidas a aplicar apenas o código de sua área, em especial quando se trata de legislação de ordem pública como é o caso do Código de Defesa do Consumidor. No caso sob exame, tem-se uma questão de ordem trabalhista, mas igualmente afeta ao meio ambiente e, principalmente ao Direito do Consumidor. Não há dúvida que um trabalhador que tenha como ofício experimentar cigarros, não consumirá apenas um por dia e, evidentemente, acabará se viciando, ou seja, tornando-se consumidor, razão pela qual deve ser protegido desde as fases pré-contratuais desse processo.
Independente disso, se deve atentar para o fato de que o artigo 17, da Lei n.º 8.078/90 (CDC) é explícito em prescrever que para todos os efeitos, as vítimas dos eventos de consumo (bystanders) são equiparadas a consumidores, o que implica em que devam receber idêntica proteção, tal qual a que é conferida para utentes e adquirentes (consumidores natos). Então, no caso dos provadores de cigarros devemos observar que embora eles não comprem o produto (relação de consumo em sentido estrito), naturalmente estão inseridos num contexto de relação de consumo em sentido amplo, a qual principia com os procedimentos de fabrico, segue na comercialização e consumo e se conclui com as maléficas conseqüências pós-contratuais que o tabaco causa aos fumantes. Ou seja, esses trabalhadores são vítimas dos processos de mercado, originados da iniciativa da indústria tabagista fornecedora, sendo que, impositivamente, devem receber, de ofício, plena proteção amparada no Código de Defesa do Consumidor que é norma de ordem pública e interesse social. Em geral, as empresas têm direito e devem fazer controle de qualidade de seus produtos, mas é no mínimo bizarra a afirmação de que cigarro teria essa condição (de “qualidade”) para ser aferida. Máquinas há para testar o conteúdo de substâncias, odores e cores, sem necessidade de que pessoas equiparadas à consumidores (vítimas do evento, conforme a lei), sigam servindo de cobaias humanas, perdendo a saúde para que fornecedores continuem a incrementar seus lucros espúrios. Impõe-se nesse caso a aplicação do Código de Defesa do Consumidor para evitar injustiças desse porte, inclusive, lançando luzes no sentido de que liminares não existem para assegurar esse tipo de absurdo, desprovido de amparo legal ou até mesmo racional.
Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.