Oscar Ivan Prux
Fome e desnutrição não se coadunam com o objetivo do Direito do Consumidor. Afinal, para o consumidor, o acesso ao consumo é um dos seus primeiros direitos. Assim, num país em que tanta gente ainda passa fome, se insere no contexto de consumo sustentável não aceitar como natural qualquer desperdício de alimentos.
É importante observar que o processo de produção e circulação de mercadorias existe para preparar a satisfação das necessidades das pessoas, com destaque especial para as essenciais como a alimentação. Quando se fala em consumo sustentável, revela-se importante visualizar todo o conjunto dessas atividades, no sentido deque sejam realizadas de forma a proteger a saúde e segurança do consumidor, assegurar interesses econômicos dele e também contribuir construtivamente para o contexto socialmente relevante direta ou indiretamente relacionado. Essa a concepção de relação de consumo em sentido amplo e de consumo sustentável sob o ponto de vista social. Portanto, a relação de consumo com todas as atividades estabelecidas para desembocar nesse destino finaldevem ser bem concebidas e executadas sob uma visão de conjunto, incluindo utilização contributiva do Código de Defesa do Consumidor.
Pois bem, neste ponto se insere a problemática relativa ao desperdício de gêneros alimentícios. Por falta de cuidado ou de técnicas mais aperfeiçoadas, perdas há no plantio, colheita, transporte, armazenamento, elaboração dos produtos, comercialização. Todos estes percalços acrescem custos que se inserem nos preços finais dos produtos a serem adquiridos e pagos pelos consumidores, prejuízo certo em detrimento dos interesses econômicos destes. E produto mais caro significa maior dificuldade de acesso para as parcelas mais carentes da população. Afora essas dificuldades, a questão se agrava pelo fato de que a saída do produto alimentício do ponto de venda (exemplo: supermercado) e sua transferência para os bares e restaurantes, ou para o próprio consumidor não encerra o problema. Há consumidores que compram além do que podem consumir e pouco se importam quando o produto estraga, vence o prazo de validade ou acabam tendo de jogar no lixo a comida que fizeram em excesso.
Neste ponto, trata-se de postura que transcende a esfera relativa ao poder aquisitivo e ao espaço de liberdade daquele que desperdiça, mas se ingressa no campo do interesse coletivo, pois tal atitude representa um verdadeiro ato de desumanidade num país em que tantos passam fome.
Por certo a técnica produtiva, contando com equipamentos novos, procedimentos mais modernos e treinamentos adequados colocará o país na pós-modernidade nessa área da produção de alimentos. Ainda mais que o aumento nos preços tem provocado interesse econômico maior nessa área. Assim se equacionará melhor o aspecto coletivo da produção até o consumo. Porém, no tocante ao aspecto que se liga mais estritamente ao consumo é que cabem providências imediatas.
Contra o mau uso ou desperdício de alimentos, o fator primordial sob o ponto de vista individual, é a educação, a instrução, o aconselhamento e a conscientização para a mudança de hábitos, forma de obter-se uma profícua alteração voluntária de comportamentos. Há que se mostrar a repercussão do ato de desperdiçar e mostrar para o consumidor que, em nosso planeta, os recursos são finitos, e até agora nem mesmo conseguimos produzir alimentos suficientes para que inexista qualquer ser humano com fome ou desnutrido. E, mais, diante de estatísticas estarrecedoras de que no Brasil, anualmente, 70 toneladas de comida são jogadas no lixo, na área de fornecimento, cabem medidas do Poder Público para que esse problema deixe da acontecer sem que se descumpra o Código de Defesa do Consumidor. Explique-se: considerando os deveres de qualidade estabelecidos pelo Código, muitos proprietários de bares, lanchonetes e restaurantes, diante de alguma sobra de alimento ainda em bom estado optam, ou por utilizá-la para tratar animais, ou por jogá-la fora. Sabedores do rigor do CDC no que tange a exigência de qualidade dos produtos alimentícios, pois estes interferem diretamente na saúde daqueles que os consomem, estes fornecedores receiam que possa haver a caracterização de uma relação de consumo remunerada indiretamente, trazendo-lhes risco de serem responsabilizados por qualquer reclamação com o alimento que doarem para os pobres. Essa é uma situação em que uma boa lei, inadequadamente, pode levar a uma conseqüência não desejável. Mas há solução para esse problema. O CDC, em seu artigo 4º, ao estabelecer a Política Nacional de Relações de Consumo, determina expressamente a presença do Estado no mercado de consumo, buscando a compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico, tudo em consonância com o artigo 170, da Constituição Federal que preconiza a viabilização para todos, de existência digna e conforme com os ditames sociais. Por evidente, o desperdício, a fome e a desnutrição não condizem com esse ideal social a ser concretizado. Observe-se que a prática do Direito do Consumidor não é incompatível com a solidariedade, algo que atualmente se revela muito importante diante dos recentes aumentos nos preços dos alimentos.
Portanto, cabe ao Estado criar estrutura com pessoal técnico para receber as doações de sobras de alimentos, aferir a qualidade e depois encaminhar para pessoas carentes, tudo sem quaisquer riscos para ambos, os consumidores e os fornecedores filantropos. Será a forma para que, tanto in natura, quanto depois da elaboração, a comida que sobra possa, com segurança, ser destinada para quem mais precisa. Uma iniciativa simples que já deveria estar funcionando em todos os Municípios brasileiros.
Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.