Para os brasileiros, a paixão pelo esporte está no sangue e já não se pode mais dizer que se restrinja ao futebol. O esporte envolve não apenas os atletas e os clubes, mas também as entidades organizadoras, os patrocinadores, a mídia que cobre os eventos, as empresas que organizam promoções, aqueles que realizam seu comércio quando dos eventos, os transportadores e, em especial, os torcedores. Enfim, há todo um enorme conjunto de pessoas e de interesses representados neste mundo do espetáculo proporcionado pelos esportes e foi com a finalidade de disciplinar/organizar esta área que surgiu a Lei n.o 10.671/2003, o chamado Estatuto do Torcedor. Durante décadas, certos dirigentes administraram o esporte como se fosse parte de seu feudo particular e sem a menor organização e respeito a regras, macularam interesses econômicos relevantes e desrespeitaram toda a imensa população de aficionados (além dos atletas) impotentes diante de tantos desmandos. Deste modo, principalmente nos aspectos de segurança, planejamento e respeito ao consumidor deste tipo de lazer, o Estatuto do Torcedor veio para tentar adequar estas relações, colocando um mínimo de ordem neste contexto.
Em primeiro lugar, deve-se observar que esta lei mais específica, embora mais recente e com o mesmo status de lei ordinária, não sobrepuja o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.o 8.078/90), na medida em que este último tem origem constitucional e é lei principiológica que dá o norte para o sistema de proteção ao consumidor. Isto não retira a relevância de que se reveste o Estatuto do Torcedor, pois a mencionada lei fez consolidar a concepção de que em eventos esportivos que não sejam completamente gratuitos (envolvendo amadores e sem cobrança de ingresso) configura-se sempre uma relação de consumo, com todas as conseqüências pertinentes estabelecidas no próprio Estatuto e no CDC.
Sem adentrar ao exame detalhado de inúmeras disposições muito importantes contidas no Estatuto (Lei n.o 10.671/2003), por agora vamos apenas centrar nosso exame nos conceitos de consumidor/torcedor e de fornecedor.
O primeiro detalhe está na menção a Torcedor (e não a consumidor, embora o seja) e seu conceito conforme o estabelecido pela íntegra do artigo 2o, que diz: ?Torcedor é toda pessoa física que aprecie, apóie, ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva. Parágrafo único: Salvo prova em contrário, presume-se a apreciação, o apoio ou o acompanhamento de que trata o caput deste artigo?. Como se observa, temos como torcedores e, portanto, consumidores, os que apenas apreciam, os que simplesmente apóiam e os que resumem sua atividade a se associar a clube ou à determinada modalidade desportiva, seja ela qual for. Assim, para fazer valer direitos previstos na referido Estatuto, não é necessário que o torcedor (consumidor) tenha de comparecer e efetivar fisicamente uma relação de consumo mediante remuneração, pois o consumo do lazer representado pelo esporte nem sempre é presencial (pode ser acompanhado, por exemplo, pela mídia, pelo celular ou pela internet). Do mesmo modo, preenchendo um dos requisitos para existência de relação de consumo, os meios de remuneração podem ser indiretos, tal como acontece quando a publicidade custeia transmissões e com o pagamento dos direitos de imagem são suportados os custos dos eventos e a remuneração dos participantes. Ou, ainda, quando empresas patrocinam ingressos através da simples apresentação dos rótulos de seus produtos. Esta concepção visualiza algo de grande significado: que o consumidor pode ter seus direitos desrespeitados, sendo sócio ou não da agremiação e mesmo não estando no local onde o evento esportivo é realizado. E mais, que nesta condição existe para o Estatuto do Torcedor, a figura do consumidor por presunção, em razão de que, para desfrutar do lazer, aprecia, apóia, ou acompanha determinada modalidade esportiva, cabendo ao fornecedor envolvido em eventual lide, o ônus de fazer prova em contrário.
Já no que concerne ao fornecedor, o Estatuto do Torcedor deixou de expressar uma conceituação, resumindo-se em mencionar como fornecedores equiparados, a entidade responsável pela organização da competição e a entidade de prática desportiva detentora do mando do jogo. Pois bem, este tipo de abordagem demonstra: a) que o conceito de fornecedor, bem como a caracterização daqueles que genuinamente tem esta condição, estão reservados dentro do sistema jurídico nacional para o CDC; b) que no Estatuto não existe um elenco taxativo de fornecedores, de modo que outras pessoas também podem ter esta condição, além das que o Estatuto menciona expressamente. Como exemplo, podemos citar as situações em que um jogo de futebol apesar de ter um clube na condição de mandante, se realize em estádio neutro pertencente a terceiro. Nesta situação, por evidente, o dono do estádio também será considerado fornecedor, tendo em vista que igualmente possui deveres a serem respeitados, em especial quanto a aspectos de segurança, limpeza das instalações, numeração dos lugares, etc. Portanto, subsiste a concepção de que quem atua para prover este mercado de consumo de lazer, inclusive participando da cadeia de fornecimento é, em essência, um fornecedor tal como prescreve o CDC.
O Estatuto do Torcedor, então, veio tornar indubitável no direito positivo, a caracterização como fornecedor ou consumidor/torcedor, apenas daqueles cuja condição poderia gerar mais questionamentos, contribuindo desta forma para elucidar este reconhecimento nos casos concretos enfrentados pela jurisprudência. E, neste sentido, jamais extrapolou ou se incompatibilizou com o que dispõe o CDC.
Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.