Inversão do ônus da prova: quando o consumidor é hipossuficiente?

Nas relações de consumo existe um natural desequilíbrio de forças entre o fornecedor e o consumidor, circunstância que redunda na vulnerabilidade do adquirente final do produto ou do serviço. E a simples presença dessa característica pressupõe condição melindrosa que requer cuidados reequilibradores da relação. Entretanto, infelizmente, ela não é a mais gravosa condicionante negativa que pode sofrer o consumidor. Existem situações específicas nas quais acontece para o consumidor, um grau ainda maior de dificuldade em decorrência da hipossuficiência deste. Considerando esta desvantagem notória, o art. 6.º, inc. VIII, da Lei n.º 8.078/90 estabelece em favor dele, a possibilidade de inversão do ônus da prova como forma de mitigar esse tipo de desequilíbrio.

Consoante este contexto, observa-se nos processos judiciais com lides envolvendo relações de consumo, que é muito comum ter-se, principalmente nas petições iniciais, o uso indiscriminado e nem sempre tecnicamente correto da expressão ?hipossuficiente?. Todavia, devido suas conseqüências jurídicas diferenciadas é fundamental distinguir, corretamente, o que sejam ?vulnerabilidade? (que é de direito material) e ?hipossuficiência? (que está primordialmente inserida no direito processual e embasa a possibilidade de inversão do ônus da prova).

Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin foi feliz ao dizer que ?A vulnerabilidade é um traço universal de todos os consumidores, ricos ou pobres, educados ou ignorantes, crédulos ou espertos. Já a hipossuficiência é marca pessoal, limitada a alguns – até mesmo a uma coletividade – mas nunca a todos os consumidores? (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, Forense, p. 224/225). Então, a hipossuficiência que atinge apenas certos consumidores, surge do fato deles serem portadores de características próprias, individuais, que os tornam mais ?vulneráveis? do que costuma ser a generalidade de pessoas nessa condição. Inclusive, por essa característica peculiar, o consumidor pode ser hipossuficiente para um tipo de relação de consumo e não ser para outra, dependendo de qual seja essa idiossincrasia individual que o aflige.

Sob o ponto de vista genérico, a hipossuficiência pode ter origem econômica ou cultural. É econômica quando o consumidor, devido a não ter recursos materiais, fica sem aquelas condições mínimas, necessárias e elementares para poder exercer seus direitos ou comportar-se adequadamente no mercado. Inclusive, saliente-se que essa possibilidade de inversão do ônus da prova, não tem na essência o objetivo de amparar o pobre, mas sim, abrir para o consumidor prejudicado por sua carência material, uma possibilidade concreta de facilitação da defesa de seus direitos através do mecanismo da modificação da distribuição dos ônus de provar. Uma coisa é o consumidor ter que provar e alguém suportar as despesas disso, ou mesmo isentá-lo de qualquer pagamento. Outra, no caso a fórmula prevista na Lei n.´ 8.078/90, é ter-se à previsão de que o encargo de provar pode ser transferido para o fornecedor, em razão de característica especial do consumidor. De outro modo, a hipossuficiência tem origem cultural quando o consumidor é carente de instrução, experiência ou até de condição intelectual para a relação de consumo complexa em que está envolvido, desde que isso seja de tal dimensão que ele fique flagrantemente inferiorizado frente ao fornecedor, não conseguindo sequer entender convenientemente seus direitos na relação de consumo. Ou, da mesma forma, quando esse fator representar obstáculo decisivo para o exercício e mesmo defesa preventiva desses direitos, seja em juízo ou fora dele. Na prática, a hipossuficiência pode advir para o consumidor, por exemplo, devido a ele ser dotado de fatores como incapacidade civil total ou parcial, grande pobreza ou condições sociais acentuadamente desfavoráveis, analfabetismo ou parco nível cultural, deficiente capacidade de entendimento e avaliação, ser muito jovem ou muito idoso, ter saúde física ou psíquica débil (ser deficiente físico, ou possuir alguma grave fobia, mania ou fraqueza psicológica), ou mesmo surgir de outros fatores que façam com que sua situação pessoal situe-se além dos limites da vulnerabilidade, levando-o a atingir condição de inferioridade sobremaneira agravada para a prática da relação de consumo e exercício dos direitos pertinentes. Outro detalhe: embora condição particular de apenas alguns consumidores, é possível existir situação em que muitas pessoas sofram, concomitantemente, da mesma limitação. Ou seja, uma coletividade ou um grupo pode estar afetado por esta circunstância, implicando em que nada obsta haver inversão da prova em ações coletivas. O sentido nunca é de prejudicar o fornecedor que fica na condição de ter que provar, sob pena de não o fazendo, presumir-se direitos em favor do consumidor, mas sim, de equilibrar as forças nessa relação. Considere-se em especial, que o fornecedor é profissional do que faz e, em comparação com o consumidor hipossuficiente, revela-se melhor aparelhado para realizar a prova.

Assim, é importante que, tanto na esfera judicial, quanto no âmbito extrajudicial, a técnica do Direito do Consumidor seja respeitada e não se confundam elementos distintos. A vulnerabilidade demanda a aplicação geral do contexto do CDC, incluindo, por exemplo, a responsabilidade objetiva. De outra forma, para constituir-se uma das justificativas (a outra é a verossimilhança) que autorizam ao juiz, com base nas regras ordinárias de experiência, poder determinar a inversão do ônus da prova, necessário é que exista a excepcionalidade decorrente de vulnerabilidade agravada (hipossuficiência) do consumidor.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.