Diante de alegação do consumidor, pode o ônus de provar em contrário ser atribuído ao profissional liberal?

No Código de Defesa do Consumidor, indubitavelmente, a regra geral é a responsabilidade objetiva (perquire-se apenas a existência de ato danoso, dano e nexo causal). Exceção existe no art. 14, § 4.º, o qual dispõe que a responsabilidade pessoal dos profissionais será apurada mediante a verificação de culpa. Ou seja, sem a prévia demonstração de ato danoso culposo, o profissional liberal não poderá ser responsabilizado. Dentro desse contexto, considerando a previsão contida no art. 6.º, inc. VIII, do CDC, emergiu a polêmica quanto à possibilidade ou não de aplicação da inversão do ônus da prova contra profissional liberal. Há quem defenda que em lide na qual consumidor pleiteia a responsabilização de profissional liberal pela prestação de seus serviços, não é cabível a aplicação de tal dispositivo. Devido a inversão do ônus da prova implicar em presunção de culpa que milita contra esse fornecedor (que estará compelido a demonstrar sua não-culpa), argumentam que haverá desrespeito à responsabilidade subjetiva prevista para ampará-lo. Mas será que a inversão do ônus da prova realmente é capaz de desnaturar a responsabilidade subjetiva (de modo a transformá-la em objetiva), afrontando a excepcionalidade estabelecida em favor dos profissionais liberais?

Fato é que quando o profissional liberal atua em sua atividade típica (prestação de serviços na área de sua formação superior), não é apropriado que possa ser responsabilizado objetivamente, a exemplo dos médicos que nem sempre podem garantir a cura de seus pacientes e, de forma assemelhada, dos advogados que, na imensa maioria dos casos, não tem como assegurar o ganho da causa, circunstância que se repete também com outros tipos de prestadores de serviços na condição de profissionais liberais. De outro lado, considerando a situação peculiar do consumidor (sua natural vulnerabilidade ou eventual hipossuficiência) e a dificuldade que ele encontra para fazer a prova, o CDC é explícito em prescrever como regra geral, que o consumidor tem direito à facilitação para defesa de seus direitos. E, em complemento, como medida especial determinada a critério do juiz, a possibilidade de contar com a inversão do ônus da prova, a seu favor, quando sua alegação for verossímel ou for ele hipossuficiente.

A interpretação dessas diferentes disposições do CDC aparenta compor um cenário de certa contraditoriedade, mas trata-se, entretanto, de um falso conflito de normas. A inversão do ônus da prova não é incompatível com a responsabilidade subjetiva prevista para reger as prestações de serviços por profissionais liberais. Basicamente, a substancial diferença entre a responsabilidade objetiva e a subjetiva, é a perquirição ou não da culpa e isso independente de quem fará a prova. Tal como já assinalamos, seja responsabilidade objetiva, seja subjetiva, a facilitação para o consumidor defender seus direitos é regra geral e se aplica para fazer emergir no conjunto probatório, dentre outros aspectos, a prova do ato danoso, do dano e do nexo causal. E independente disso, não há porque não ser utilizada para contribuir no tocante a perquirição da culpa.

Em específico, quanto à inversão do ônus da prova, com sua característica de excepcionalidade, situações há em que a necessidade dela é mais do que evidente. Exemplo disso, tem-se quanto aos prontuários médicos que sempre ficam com os profissionais de saúde, sendo impositiva a decretação da inversão do ônus da prova para que eles tenham de ser apresentados em juízo, de modo a que possam servir para aclarar a verdade e possibilitar uma solução justa para o caso. Outro detalhe: também há que se confiar no prudente arbítrio do juiz, no sentido de decretar a inversão do ônus da prova apenas nas situações em que tal medida revele-se necessária e justa.

A respeito da questão, Voltaire de Lima Moraes, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, teceu as seguintes considerações: ?A questão referente à responsabilidade civil objetiva ou subjetiva diz respeito a tema disciplinado em sede de direito substancial, enquanto a inversão do ônus da prova diz com tema afeto ao direito processual. Não há, assim, qualquer incompatibilidade que, em sendo a responsabilidade subjetiva, seja determinada a inversão do ônus da prova. A conseqüência disso será que, ao invés de o consumidor provar que a culpa pela ocorrência de um evento que lhe causou prejuízo foi do fornecedor (profissional liberal), tal ônus passa a ser deste, que, in casu, deverá demonstrar que houve-se com perícia, prudência ou zelo, não tendo, dessa forma, incidido em nenhuma das modalidades de culpa? (Revista de Direito do Consumidor, n.º 31, pág. 68, jul/set/99, RT).

Acresça-se a esse correto posicionamento doutrinário, a constatação de que a inversão do ônus da prova não significa certeza de prova (que pode não vir aos autos) e nem mesmo que, caso o profissional liberal não se desincumba de seu ônus, necessariamente perderá a ação, pois ao decidir o juiz avaliará todo conjunto probatório. Por derradeiro, vale ressaltar as dificuldades que se antepõem frente ao consumidor para fazer a prova (provas que desaparecem, corporativismo de profissionais liberais que, em seus laudos periciais, se omitem em afirmar a culpa de colegas que prestam maus serviços, etc.). Paralelamente, avalie-se que, pelas características típicas de sua atividade, a parte com mais condições de fazer a prova é o profissional liberal. Deste modo, até atendendo-se ao princípio da solidariedade da prova, esse ônus pode ser atribuído a ele, seja porque detém os elementos ou documentos capazes de revelar a verdade, seja porque realmente é mais apto para realizar tal encargo.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.