A possibilidade de um diálogo das fontes entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil

Em ação na qual um consumidor pleiteia indenização por danos morais contra indústrias de cigarro, a 5.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, decidiu que o autor pode se valer do prazo de prescrição estabelecido no Código de Defesa do Consumidor, assim como, desde que não utilizando da inversão do ônus da prova, optar por requerer com base no prazo de prescrição previsto no Código Civil, que é mais longo e mais consentâneo com a proteção do consumidor neste caso.

Trata-se de uma inovadora utilização prática do ?diálogo das fontes?, doutrina preconizada pelo eminente Eric Jaime e defendida ardorosamente por Cláudia Lima Marques, considerando que quando duas normas regem o mesmo fato, o Juiz não precisa expelir uma para fora do sistema jurídico (ficando com a aplicação da outra), mas pode buscar em cada uma delas os melhores preceitos para fazer justiça ao caso concreto. Não é difícil perceber a polêmica que esta técnica consegue produzir entre aqueles que a defendem e os que argumentam em prol da segurança jurídica, consistente em saber-se previamente qual norma será aplicada, sem que o julgador possa sempre fazer uma opção casuística e talvez ideológica. Para entender esta temática é interessante revolver um pouco da evolução da doutrina nesta seara.

O mestre do Direito francês, Jean Calais-Auloy apontou a clara distinção entre o Direito do Consumidor e outros direitos (comercial, econômico, da concorrência, etc.), destacando principalmente suas peculiaridades e a multidisciplinariedade de seu conteúdo. Assim, ao longo do tempo, consolidou-se o reconhecimento de que o Direito do Consumidor pertence ao Direito Privado, mas tem identidade própria, sendo dotado de aspectos técnicos específicos, típicos dessas relações jurídicas. Entretanto, essa concepção não deve ser usada para simplificar o raciocínio: ?a cada tipo de situação só se aplica uma norma?. Existe todo um sistema para atuar, concomitantemente, em prol dos direitos da parte mais fraca (vulnerável) na relação jurídica de consumo. Em nosso entendimento, de forma irrestrita, devem fazer parte do sistema pertencente ao Direito do Consumidor, todas as regras destinadas a proteger esse vulnerável partícipe do processo econômico, independente do destaque para o micro-sistema estabelecido na Lei 8.078/90. Isto não afasta outras normas (ex.: as de vigilância sanitária, a lei antitruste, Lei 8.137/90, etc.), que também contribuem para proteger os interesses dos consumidores, assim como, as estabelecidas para reger determinados tipos de relação de consumo em específico (exemplo: as normas que regem os seguros em geral, a Lei 9656/98, as normas de transporte, etc.). Apenas cabe demarcar a incidência da norma consumerista, como forma de sinalizar para a esfera prática, quando diante da relação de consumo, se aplica o CDC e, se é possível, a concomitante utilização de outras normas existentes no sistema jurídico nacional.

Com uma vertente sistemática, cremos que o CDC rege toda e qualquer relação de consumo stricto sensu (onde estão identificados consumidor, fornecedor e fornecimento), sendo ainda, a norma específica fundamental que vai alcançá-la mesmo quando envolvidas outras áreas do Direito. Já com relação às demais situações não-integrantes da relação de consumo stricto sensu (demais negócios jurídicos que acontecem no mercado, entre os fornecedores), defendemos a posição de que as normas do sistema de proteção ao consumidor podem ser aplicadas, inclusive o CDC, apenas que isso deve ficar restrito àquelas situações em que estejam envolvidos interesses dos consumidores, e que por isso, possam ser classificadas como relação de consumo em sentido amplo (lato sensu). Ressalve-se a advertência de que a atuação das normas consumeristas, nesses casos, deve restar vedada quando os interesses envolvidos digam respeito exclusiva e tão-somente a outros agentes de mercado (fornecedores) e demais pessoas que não o consumidor. Por outro lado, quanto à aplicabilidade da teoria do ?diálogo das fontes?, consideramos que à norma mais pertinente ao ponto controvertido objeto de elucidação, é a que merece ter reconhecida a aplicabilidade (aproveitando o critério de Norberto Bobbio: hierarquia, especialidade e recenticidade). Por exemplo, note-se que embora o CDC estabeleça que o prazo para reclamar é de 30 dias para produtos ou serviços não-duráveis e 90 dias para produtos ou serviços duráveis (art. 26), os contratos de seguros costumam conter cláusula fixando o prazo de um ano para o segurado reclamar contra a seguradora. Esta constatação indica a viabilidade de considerar-se os prazos previstos no CDC apenas como um standard mínimo que pode ser superado em situações específicas, como no mencionado contrato em que se pode aplicar o prazo prescricional de um ano, previsto no Código Civil (art. 206, § 1.º). Desta forma, sem ferir a segurança jurídica, deve-se procurar ampliar ao máximo as órbitas de proteção em que as normas consumerista possam atuar, forma de salvaguardar os interesses desses vulneráveis destinatários últimos do processo econômico. Como alude Thierry Bourgoignie: é importante que se pense numa teoria social de consumo. Concluímos, afirmando a importância da jurisprudência pacificar seus posicionamentos quanto à possibilidade de aplicação de um diálogo das fontes quando, na seara do consumo, uma mesma matéria estiver regrada em duas ou mais normas. Não convém deixar apenas para a esfera da concepção individual de cada julgador, a aplicação de eventuais casuísmos neste ou naquele sentido. Que os Tribunais Superiores se manifestem, para que impere a proteção dos consumidores com a desejável segurança jurídica.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.