O notável jurista e filósofo Miguel Reale, atribuía aos princípios a significativa qualificação de ?verdades fundantes?, posto serem ?certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo do saber?. Esse é o sentido basilar dos princípios, cuja missão é servir como pedra fundamental, verdadeiro alicerce e fonte de sustentação para o restante do conteúdo do preceito legal. No caso do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que é lei principiológica por excelência, tal não é diferente. É possível inferir claramente no texto da Lei 8.078/90, os princípios aos quais é atribuída essa fundamentalidade, dentre eles, os da ordem pública e do interesse social. A simples leitura do art. 1.º, do referido diploma legal, aponta estes princípios imperativos e de magnitude ímpar, razão inclusive, de ancorar-se na própria origem constitucional do código (CF., art. 5.º, inciso XXXII e art. 170, inciso V), sendo que duas conseqüências fundamentais emanam desta conjuntura: – a primeira delas é de ser capaz de fulminar por inconstitucionalidade, qualquer norma que contrarie o disposto no CDC para cumprimento do propósito constitucional de proteger o consumidor; – e, a segunda, que infere e segue característica idêntica já tradicionalmente utilizada em nosso direito para normas de ordem pública, que é de dar-lhe forma cogente (que salvo em casos de expressa autorização legal, não dá as partes à possibilidade de convencionar afastando-se dessa norma), o que permite sua aplicação de ofício pelo julgador.

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Na visão jurídica, temos como de ordem pública e interesse social, o conjunto de normas essenciais à convivência social. A supressão dessas normas levaria a inviabilizar a boa convivência social, posto que seus dispositivos inferem a interesses de enorme número de pessoas, tal como, no que pertine a proteção dos consumidores e sua legislação norteadora, no caso o CDC. Diante da certeza que a qualidade de nossas vidas depende da qualidade de nossas relações de consumo e do fato de que cada relação de consumo espraia conseqüências boas ou más, conforme o tratamento que lhe tenha sido dado (dimensão coletiva), impõe-se reconhecer que a proteção do consumidor deve se inserir entre os direitos mais protegidos para o ser humano. Interessa a todos, inclusive os agentes econômicos fornecedores, que a realidade do mercado seja sadia e construtiva. Portanto, não há como negar a condição de interesse social alcançada pela legislação consumerista, reconhecendo-a como tuteladora efetiva de relações que afetam instituições essenciais para a própria sobrevivência pacífica e produtiva da organização social. Essa condição de ser indispensável e poder abalar profundamente a própria subsistência e boa preservação da instituição social é, em síntese, o que confere para um direito a condição de ser considerado de ordem pública e interesse social. Por evidente, todos os direitos são humanos (e apenas humanos), mas o Direito do Consumidor, tendo em vista lidar com a qualidade de vida das pessoas, é um dos que mais faz destacar essa condição, daí estes princípios positivos atribuídos a ele. Em países não-desenvolvidos, a falta de qualidade de um produto ou serviço, ao lesar o consumidor carente (econômica e financeiramente), é de molde a propiciar um verdadeiro ato desumano, posto que o bem pode lhe ser essencial até para a própria sobrevivência, sendo que esse consumidor, freqüentemente, não tem condições materiais para readquirir um outro em substituição.

Assim, essa conjuntura supera a simples não-satisfação da necessidade buscada no fornecimento em si e, mesmo que não haja outros danos além dos patrimoniais, diante da carência material que lhe impossibilita de repor a aquisição daquilo que muitas vezes lhe é fundamental, costuma haver comprometimento da possibilidade de conseguir uma qualidade de vida minimamente digna. Exemplo: quando um consumidor carente sofre com a falha no serviço de fornecimento de água tratada (potável) e não possui recursos para comprar água mineral, naturalmente tem sua qualidade de vida comprometida, o que demonstra o quanto é relevante este conjunto de normas para a proteção do consumidor, por isso tidas como de ordem pública e interesse social. Considere-se, igualmente, que vivemos em uma sociedade com fornecimentos uniformes para enorme número de pessoas, fórmula com capacidade de provocar danos que chegam atingir a coletividade. Rememore-se que nossa Carta Magna conferiu a defesa do consumidor, um lugar de destaque entre os direitos fundamentais das pessoas, colocando-a em duas esferas primordiais: – na individual, onde compartilha com os direitos mais importantes para o cidadão especificamente considerado (art. 5.º); – e, na coletiva, onde estão esculpidos os princípios gerais que ajudam a definir o modelo político/econômico adotado no país (art. 170). E não a distinguiu em ordem de importância, de direitos basilares como a liberdade, o direito à vida, à igualdade e a propriedade. No mesmo sentido, a colocou em pé de igualdade com princípios que são verdadeiros pilares ou sustentáculos da organização do nosso Estado, tais como, a soberania nacional, a livre iniciativa, a livre concorrência, a função social da propriedade e a proteção do meio ambiente, dentre outros.

Ao que se conclui que a inclusão no texto constitucional e no art. 1.º, do CDC, dos princípios da ordem pública e interesse social, implica em estabelecer o comando de que pairem sobre toda legislação consumerista, de modo que assim se possa instrumentalizar a correta proteção dos interesses legítimos de todos nós, os consumidores.

Oscar Ivan Prux é advogado, economista, professor, especialista em Teoria Econômica, mestre e doutor em Direito. Coordenador do curso de Direito da Unopar em Arapongas-PR. Diretor do Brasilcon para o Paraná.

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