Tribunal do júri (plenitude de defesa)…

Tribunal do júri (plenitude de defesa). Tréplica (inovação). Contraditório/ampla defesa (antinomia de princípios). Solução (liberdade)

HABEAS CORPUS N.º 61.615-MS
Rel.: Min. Hamilton Carvalhido
R.P/Acórdão: Min. Nilson Naves
EMENTA

1. Vem o júri pautado pela plenitude de defesa (Constituição, art. 5.º, XXXVIII e LV). É-lhe, pois, lícito ouvir, na tréplica, tese diversa da que a defesa vem sustentando.
2. Havendo, em casos tais, conflito entre o contraditório (pode o acusador replicar, a defesa, treplicar sem inovações) e a amplitude de defesa, o conflito, se existente, resolve-se a favor da defesa privilegia-se a liberdade (entre outros, HC-42.914, de 2005, e HC-44.165, de 2007).
3. Habeas corpus deferido.
(STJ/DJU de 9/3/09)

Decidiu o Superior Tribunal de Justiça por sua Sexta Turma que é possível a defesa, na tréplica, inovar com tese diversa daquela que vinha sendo sustentada. Isso é permitido porque o júri é pautado pelos princípios do contraditório e da plenitude da defesa (Constituição, art. 5.º, XXXVIII e LV).

Decisão por maioria de votos. Vencido o Relator originário, lavrou o acórdão o Ministro Nilson Naves.

Constam do voto vencido e vencedor. Acompanharam o voto vencedor os Ministros Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura:

VOTO-VISTA

O Exmo. Sr. Ministro Nilson Naves: Pode o acusador replicar, a defesa, treplicar. Nesse momento do procedimento final, pode a defesa sustentar algo diferente do que vinha sustentando? Não, não pode, foi o que, na origem, asseverou o Tribunal de Justiça no julgamento da apelação: “… é incabível a inovação de tese defensiva, na fase da tréplica, não levantada antes em nenhuma fase do processo, visto que viola o princípio do contraditório.”

Estabelecendo, entretanto, oposição ao acórdão local, a impetrante invoca princípios que, reconhecendo a instituição do júri, assegura-lhe a plenitude de defesa, isto é, assegura aos acusados em geral a ampla defesa.

É instigante, do mesmo modo de bom sabor intelectual, a questão suscitada nestes autos. O Relator, Ministro Hamilton Carvalhido, votou, na sessão de 17/12/07, pela denegação da ordem. S. Exa. lembrou-nos a existência de julgado da 5.ª Turma, do Ministro Dipp, segundo o qual “é incabível a inovação de tese defensiva, na fase de tréplica, não ventilada antes em nenhuma fase do processo, sob pena de violação ao princípio do contraditório” (REsp-65.379, DJ de 13/5/02).

É o contraditório, em casos tais, que se tem por violado confira-se, entre outras, a lição de Marques Porto (“violenta o contraditório, por isso não podendo gerar quesitos”). Mas há lições noutro sentido, entre elas, também nos lembrou o Relator, a de Guilherme Nucci. No Superior Tribunal, quando do julgamento, no ano 1992, do REsp-5.329, disse Cernicchiaro: “O réu não é obrigado a alegar. O Ministério Público, sim, tem que abrir o jogo. O réu pode surpreender o Ministério Público. A defesa é ampla.”

Efetivamente, vem o júri pautado pela plenitude de defesa, a teor do que reza a alínea a do inciso XXXVIII, também o inciso LV (art. 5.º da Constituição). É o que tenho por suficiente, com toda respeitosa vênia, até porque venho eu resolvendo os aparentes conflitos em favor da liberdade. Eis o que escrevi por ocasião do deferimento do pedido liminar no HC-42.914 (DJ de 19/4/05):
“2. O entendimento que tenho da questão de caráter legal e constitucional é diferente do acima exposto. Na existência do indicado conflito, a solução que se me afigura melhor é a favor da liberdade. Já escrevi: ‘Jamais percamos de vista que, entre os direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição, encontra-se inscrito que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’. Aliás, o postulado axiológico da presunção de inocência, por ser eterno, universal e imanente, nem precisaria estar gravado em texto normativo’. Há mais: a inviolabilidade de direitos que dizem com a dignidade da pessoa humana, e a dignidade é um dos fundamentos em que se assenta a República Federativa do Brasil. Há mais: e a ampla defesa? Instituto/princípio que também se inscreve entre os postulados universais e que ‘não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos…’ Perdoem-me os pensamentos contrários, mas, quando existe o conflito, devemos solvê-lo em prol da liberdade.”

Em tema análogo ao do HC-42.914, o HC 44.165 (DJ de 23/4/07) porta esta ementa:

“Inquérito policial (acesso aos autos). Sigilo das investigações (relatividade). Incompatibilidade de normas (antinomia de princípio). Defesa (ordem pública primária).

1. Há, no nosso ordenamento jurídico, normas sobre sigilo, bem como normas sobre informação; enfim, normas sobre segurança e normas sobre liberdade.
2. Havendo normas de opostas inspirações ideológicas antinomia de princípio , a solução do conflito (aparente) há de privilegiar a liberdade. Afinal, somente se considera alguém culpado após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
3. A defesa é de ordem pública primária (Carrara); sua função consiste em ser a voz dos direitos legais inocente ou criminoso o acusado.
4. De mais a mais, é direito do advogado examinar autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento (Lei n.º 8.906/94, art. 7.º, inciso XIV).
5. A Turma ratificou a liminar de caráter unipessoal e concedeu a ordem a fim de permitir ao advogado vista, em cartório, dos autos de inquérito.”

Com todo respeito, peço licença para conceder a ordem de acordo com o pedido formulado pela impetrante.

VOTO

O Exmo. Sr. Ministro Hamilton Carvalhido (Relator): Senhor Presidente, alega a Defensoria Pública nulidade do julgamento que resultou na condenação de José Sabino, por não quesitada a tese defensiva da inexigibilidade de conduta diversa.
São estes os fundamentos do acórdão impugnado:

“Trata-se de apelação criminal interposta por José Sabino, objetivando a reforma do decisum prolatada pelo juízo da 1.ª Vara da Comarca de Ivinhema, que o pronunciou e condenou como incurso nas sanções do artigo 121, § 2.º, incisos II e IV, do Código Penal, à pena de 13 (treze) anos de reclusão em regime inicialmente fechado, tendo em vista que no dia 26 de março de 1991, por volta de 21h30min, na residência da vítima Antonio Valdomiro Gouveia, na Antiga Gleba Novo Horizonte do Sul, na cidade de Ivinhema, impelido por motivo fútil e utilizando-se de recurso que dificultou a defesa da vítima, desferiu várias facadas na vítima, causando-lhe a morte.

Argumenta o apelante em suas razões que o julgamento deve ser anulado, ante a não-quesitação, pela juíza Presidente, da tese defensiva da inexigibilidade de conduta diversa, sustentada em plenário.

Alega ainda que a jurisprudência majoritária do STJ admite no julgamento pelo Júri Popular a quesitação sobre as causas supralegais de excludente de culpabilidade, como é o caso em comento, pondera, ainda, que a denegação da magistrada de primeira instância em inserir nos quesitos submetidos a julgamento pelo Júri a excludente da inexigibilidade de conduta diversa é causa de nulidade do julgamento, assim, requer seja submetido a novo julgamento, prequestionando a negativa de vigência do artigo 5.º, inciso XXXVIII, alínea ‘a’, da Constituição Federal.

Primeiramente insta salientar que realmente a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacifica quanto à possibilidade de, no julgamento pelo Tribunal do Júri, serem formulados quesitos referentes à causa supralegais de excludente de culpabilidade. Ocorre que no caso em comento, não foi a falta de previsão legal que impeliu a decisão da magistrada Presidente do Julgamento a indeferir a formulação dos quesitos relativos à tese de inexigibilidade de conduta diversa, e sim o fato desta quesitação não ter sido aventada durante a exposição da defesa em plenário, durante as duas horas dos debates, sendo, apenas ventilada quando da tréplica, ocasião em que inovou, causando surpresa na acusação e não permitiu a esta contrariar, violando, assim o princípio do contraditório.

Com efeito, pode se verificar a assertiva acima exarada na Ata da Sessão de Julgamento constante às f. 244-245, em que resta consignado que durante a primeira parte dos debates a defesa apresentou unicamente a tese de Desclassificação do Crime imputado ao réu para Homicídio Privilegiado. Tendo após a réplica da acusação, ou seja, na tréplica da defesa, esta apresentado a alegada tese de inexigibilidade de conduta diversa.

Portanto, não há a alegada ilegalidade e por conseqüência nulidade aventada pela defesa no indeferimento da sua tese relativa à inexigibilidade de conduta diversa, pois é incabível a inovação de tese defensiva, na fase da tréplica, não levantada antes em nenhuma fase do processo, visto que viola o princípio do contraditório.

Sobre o assunto Julio Fabbrini Mirabete em sua obra Processo Penal, editora Atlas, 10.ª edição, f. 43, leciona:

‘Corolário do princípio da igualdade perante a lei, a isonomia processual obriga que a parte contrária seja também ouvida, em igualdade de condições (audiatur et altera pars). A ciência bilateral dos atos e termos do processo e a possibilidade de contrariá-los são os limites impostos pelo contraditório a fim de que se conceda às partes ocasião e possibilidade de intervirem no processo, apresentando provas, oferecendo alegações, recorrendo das decisões, etc.’

Além disso, não existe nos autos nenhuma irregularidade que possa acarretar a nulidade do julgamento, portanto, correta a decisão da Juíza Presidente a qual pautou na legalidade, consagrando os princípios constitucionais, respeitando a isonomia entre as partes, não violando o princípio do contraditório, como quer fazer valer a defesa com seus argumentos.

Outrossim, não observo, que houve, por parte do Conselho de sentença, decisão manifestamente contrária à prova dos autos, visto que este se pautou na versão que lhe soou verdadeira e plausível amparada na persecução penal.

Nesse sentido, o art.5.º, inciso XXXVIII, alínea c, da CF/88 dispõe que:

‘É reconhecida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados a soberania dos veredictos’.

Verifica-se pela Constituição Federal que os julgamentos proferidos pelo Tribunal do Júri estão assegurados pelos princípios da soberania, não podendo ser modificadas as decisões que se mostram em sintonia com provas razoáveis colhidas nos autos.
Sendo assim, em atenção a um dos princípios basilares da instituição do Júri, qual seja, a soberania dos veredictos, a decisão deve ser mantida.

Quanto ao prequestionamento, entendo que os argumentos são insuficientes, e não aponta qual o fato concreto e individualizado questionado, apenas realiza breve elucubração aos dispositivos legais, que segundo seu entendimento, teriam sido desrespeitados.

Diante do exposto, de acordo com parecer da Procuradoria, nego provimento ao recurso.” (fls. 56/58).

Denego a ordem.

De início, consigno que a Defensoria, na inicial do writ, deixa certo o quanto afirmado no acórdão impugnado, vale dizer, que a tese da inexigibilidade de conduta diversa só foi aventada por ocasião da tréplica.

Passo seguinte, é vedada a inovação de tese na tréplica, pena de violação do princípio do contraditório, valendo gizar, na dicção de Antonio Scarance Fernandes, que “(…) em razão da garantia do contraditório no processo penal, não se admite que uma parte fique sem ciência dos atos da parte contrária e sem oportunidade de contrariá-los. Deve-se, por isso, entender que a Constituição, ao consagrar o contraditório no art. 5.º, LV, garante-o no processo criminal a ambas as partes, não somente ao acusado, mas também ao Ministério Público.” (in Processo Penal Constitucional, 3.ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, págs. 62/63).

É essa a doutrina majoritária, embora Guilherme de Souza Nucci sinalize em sentido oposto (in Código de Processo Penal Comentado, 3.ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2004, págs. 732/733).

Leia-se, a propósito, Hermínio Alberto Marques Porto:

“(…) Reabertos, pois, debates, com a réplica e a tréplica, os interesses das partes estão assegurados. Mas, se a defesa técnica, aproveitando a tréplica, apresenta tese defensiva nova, por acréscimos substancial ou alteração fundamental do que tenha pleiteado ao responder à acusação, estará subtraindo da parte autora o direito de contrariar, e que a lei processual assegura restritivamente nos limites da réplica; tal inovação defensiva – que é de uso, embora irregular, possível, porque os pontos de defesa não são anteriormente à sessão de julgamento fixados – violenta o contraditório, por isso não podendo gerar quesitos, ou restará cerceada a acusação e viciado o julgamento, competindo, então, ao Juiz Presidente, à frente de inovações defensivas apresentadas na tréplica, que alterem fundamentalmente a interpretação dos fatos e que motivem expresso (incisos III, IV e X do art. 497) protesto da acusação, advertir a defesa sobre a violação de princípios de processo, não deferindo, por motivação que fará consignar em ata (inciso XVI do art. 495), quesitos defensivos decorrentes de tal atividade inovatória e cerceadora da acusação.” (in Júri, 10.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2001, págs. 125/126).

Nesse sentido, ainda, o parecer do Ministério Público Federal, da lavra da ilustre Subprocuradora-Geral da República Maria Eliane Menezes de Farias, com citação a julgado do Superior Tribunal de Justiça, verbis:

“A questão central dos autos se refere não exatamente à possibilidade de, no julgamento pelo Tribunal do Júri, serem formulados quesitos referentes às causas supralegais excludentes de culpabilidade. Refere-se, sim, ao momento em que esta causa foi ventilada.

In casu, como pode-se verificar da Ata da Sessão de Julgamento, a defesa, durante a primeira parte dos debates, apresentou tão somente a tese de desclassificação do crime para homicídio privilegiado. A alegada tese de inexigibilidade de conduta diversa, foi apresentada, apenas, na fase da tréplica.

Assim, a arguída nulidade do julgamento é incabível eis que, no momento da tréplica, houve inovação de tese defensiva, não levantada em nenhuma fase do processo, violando, assim o princípio do contraditório.

Nestes casos não há que se anular o julgamento, como bem determinou o Tribunal Estadual.

Neste sentido:

CRIMINAL. RECURSO ESPECIAL. JÚRI. NULIDADE. NÃO-INCLUSÃO DE QUESITOS A RESPEITO DE PRIVILÉGIO. INOVAÇÃO DE TESE DEFENSIVA NA TRÉPLICA. IMPOSSIBILIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. RECURSO DESPROVIDO.

I. Não há ilegalidade na decisão que não incluiu, nos quesitos a serem apresentados aos jurados, tese a respeito de homicídio privilegiado, se esta somente foi sustentada por ocasião da tréplica.
II. É incabível a inovação de tese defensiva, na fase de tréplica, não ventilada antes em nenhuma fase do processo, sob pena de violação ao princípio do contraditório.
III. Recurso desprovido. (Resp 65379/PR, Rel. Min. Gilson Dipp, 5.ª Turma, DJ 13/5/2002, p. 218)
Ante o exposto, o parecer é pela denegação da ordem de habeas corpus.” (fls. 62/63).
Pelo exposto, denego a ordem.
É O VOTO.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.