Responsabilidade civil. Retenção de salário para pagamento de cheque especial. Ilicitude. Cabimento da reparação por dano moral.

RECURSO ESPECIAL N.º 507.044/AC

REL.: MIN. HUMBERTO GOMES DE BARROS

EMENTA

– Mesmo com cláusula contratual permissiva, a apropriação do salário do correntista pelo banco-credor para pagamento de cheque especial é ilícita e dá margem a reparação por dano moral.

– Recurso não conhecido.

(STJ/DJU de 3/5/04, pág. 150)

Na linha de diversos precedentes, decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Humberto Gomes de Barros, que o banco não pode se apropriar de salário do cliente depositado em sua conta corrente, como forma de compensar-se da dívida deste em face de contrato inadimplido, uma vez que a remuneração, de caráter alimentar, é imune a constrição dessa espécie. Semelhante procedimento configura dano moral indenizável.

Consta do voto do relator:

Ministro Humberto Gomes De Barros (Relator): Preliminarmente, malgrado a rejeição dos declaratórios, os acórdãos embargado e recorrido foram claros e decidiram, fundamentadamente, a lide nos termos em que lhes foi colocada.Inocorre violação ao art. 535 do CPC.

Mesmo com cláusula contratual permissiva, a apropriação do salário do correntista pelo banco-credor para pagamento de cheque especial é ilícita e dá margem à reparação por dano moral. Há alguns precedentes do STJ:

“Civil e processual. Ação de indenização. Danos morais. Apropriação, pelo Banco depositário, de salário de correntista, a título de compensação de dívida. Impossibilidade. CPC, art. 649, IV. Recurso especial. Matéria de fato e interpretação de contrato de empréstimo. Súmulas n.º 5 e 7 – STJ.

(…)

II. Não pode o banco se valer da apropriação de salário do cliente depositado em sua conta corrente, como forma de compensar-se da dívida deste em face de contrato de empréstimo inadimplido, eis que a remuneração, por ter caráter alimentar, é imune a constrições dessa espécie, ao teor do disposto no art. 649, IV, da lei adjetiva civil, por analogia corretamente aplicado à espécie pelo Tribunal a quo.

III. Agravo improvido” (AGA 353.291/PASSARINHO);

“Conta corrente. Apropriação do saldo pelo banco credor. Numerário destinado ao pagamento de salários. Abuso de direito. Boa-fé.

Age com abuso de direito e viola a boa-fé o banco que, invocando cláusula contratual constante do contrato de financiamento, cobra-se lançando mão do numerário depositado pela correntista em conta destinada ao pagamento dos salários de seus empregados, cujo numerário teria sido obtido junto ao BNDES.

A cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva do que a cláusula mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição do título, aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor, nos valores e no momento por ele escolhidos.

Recurso conhecido e provido.” (REsp 250.523/ROSADO); e,

“BANCO. Cobrança. Apropriação de depósitos do devedor.

O banco não pode apropriar-se da integralidade dos depósitos feitos a título de salários, na conta do seu cliente, para cobrar-se de débito decorrente de contrato bancário, ainda que para isso haja cláusula permissiva no contrato de adesão.

Recurso conhecido e provido.” (REsp 492.777/ROSADO).

Nesse último julgado, o em. Relator disse:

“(…) Nenhum juiz deferiria a penhora do faturamento integral de uma empresa ou a penhora do salário de um trabalhador. Logo, não me parece razoável que se julgue lícito o comportamento descrito nos autos. A disposição constante do contrato de adesão é ilícita. (…)”.

Não conheço do recurso.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Carlos Alberto Menezes Direito, Nancy Andrighi e Antônio de Pádua Ribeiro.

Penal. Substituição da pena privativa de liberdade – Falta de fundamentação. Nulidade.

HABEAS CORPUS N.º 29.357/RS

Rel.: Min. Felix Fischer

EMENTA

O princípio do livre convencimento exige fundamentação concreta, vinculada, do ato decisório. A escolha das penas restritivas de direito dentre as previstas no art. 43 do CP, sem apontar qualquer fundamento, não preenche as exigências constitucionais e infra-constitucionais (art. 93, inciso IX, 2.ª parte da Carta Magna e arts. 157, 381 e 387 do CPP). Não se pode confundir livre convencimento com convicção íntima (Precedentes).

Writ parcialmente concedido, anulando-se o v. julgado tão-somente na parte que substituiu a pena privativa de liberdade.

(STJ/DJU de 10/5/04, pág. 313)

Considerou a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Felix Fischer, que na substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito deve o juiz justificar pormenorizadamente a escolha entre as várias espécies, sob pena de nulidade do julgado nesta parte.

Consta do voto do relator:

O Exmo. Sr. Ministro Felix Fischer: Percebe-se dos autos que a pena de 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias de reclusão foi, em grau recursal, substituída, na forma do art. 44 do CP, por prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária.

Cumpre, inicialmente, asseverar que a substituição em tela poderia ser dar, em tese, por três outras formas, a saber: perda de bens e valores, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana. Desconsiderada, aqui, a divisão doutrinária estabelecida entre penas genéricas e específicas.

Ocorre, contudo, que a escolha foi feita sem qualquer motivação. Vale dizer, a opção deveria, ainda que sucintamente, ser fundamentada.

É flagrante, pois, a ausência de motivação concreta, vinculada, com evidente adoção do vedado princípio da convicção íntima ao invés do livre convencimento concretamente fundamentado. O princípio da persuasão racional ou livre convencimento (art. 157 do CPP) exige fundamentação concreta, calcada na prova dos autos, observadas as regras jurídicas pertinentes e as da experiência comum aplicáveis. A convicção pessoal, subjetiva, do magistrado, alicerçada em aspectos outros que não os acima indicados, não se presta para supedanear uma decisão. Aliás, está na “EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS” do C.P.P. que “é a motivação da sentença que oferece a garantia contra os excessos, os erros de apreciação, as falhas de raciocínio ou de lógica ou os demais vícios de julgamento” (n.º XII, in fine). Referindo-se ao princípio enfocado, tem-se a ensinança de J. FREDERICO MARQUES, a saber: “Esse princípio libertou o juiz, ao ter de examinar a prova, de critérios apriorísticos contidos na lei, em que o juízo e a lógica do legislador se impunham sobre a opinião que em concreto podia o magistrado colher, não o afastou, porém, do dever de decidir segundo os ditames do bom senso, da lógica e da experiência. O livre convencimento que hoje se adota no Direito Processual não se confunde com o julgamento por convicção íntima, uma que vez que o livre convencimento lógico e motivado é o único aceito pelo moderno processo penal.” (in “ELEMENTOS DE PROCESSO PENAL”, Vol. II, p. 278, 1997). E, de forma adequada à quaestio, preleciona GERMANO MARQUES DA SILVA: “É hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz” (in “CURSO DE PROCESSO PENAL”, vol. III, ps. 288/289, 1994, Ed. Verbo, Lisboa). Referindo-se – em lição aplicável ao nosso ordenamento jurídico – à sistemática de apreciação da prova e da convicção do julgador, ensina J. FIGUEIREDO DIAS: “O princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida.” Mais adiante, no punctum saliens: “A conseqüência mais relevante da aceitação destes limites à discricionariedade estará também aqui em que, sempre que tais limites se mostrarem violados, será a matéria susceptível de recurso “de direito” para o STJ” (in “DIREITO PROCESSUAL PENAL”, ps. 202/203, 1974, Coimbra Editora).

O v. acórdão, na parte referente à substituição da pena, é nulo por falta de suficiente fundamentação (arts. 157, 381 e 387 do CPP e 93, inciso IX, 2.ª parte, da Lex Fundamentalis).

Para corroborar esse entendimento, trago à colação os seguintes precedentes desta Corte:

“HABEAS CORPUS. PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. SUBSTITUIÇÃO. RESTRITIVA DE DIREITOS. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. FUNDAMENTAÇÃO DA ESCOLHA. EXIGÊNCIA LEGAL. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.

A substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, antes de ser um benefício legal, é um direito subjetivo do apenado, razão pela qual deve o juiz justificar pormenorizadamente a escolha entre as várias espécies, anotando, inclusive, a individualização em torno dos fatos do processo e da condição pessoal do réu.

Inexistente qualquer motivo suficiente para o enquadramento da prestação de serviços à comunidade, cabe aceitar a pretensão heróica para afastar tal omissão.

Ordem concedida parcialmente, tão-somente para que o Tribunal de origem possa reconduzir a escolha da pena restritiva de prestação de serviços à comunidade em termos concretos, com fundamentação adequada.”

(HC 23228/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 10/11/2003).

“CRIMINAL. HC. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.

I – Considera-se carente de fundamento a decisão que, substituindo a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, deixa de indicar, sequer sucintamente, os motivos pelos quais optou pela prestação de serviços à comunidade, em detrimento das demais modalidades previstas no art. 43 do Código Penal.

II – Tratando-se de nulidade prontamente verificada, deve ser permitido o saneamento via habeas corpus.

III – Ordem concedida para anular o acórdão impugnado, tão-somente quanto à fixação de reprimenda restritiva de direitos, a fim de que outro seja proferido, com a devida fundamentação acerca da pena aplicada.”

(HC 18284/RS, 5.ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 25/02/2002).

“HABEAS CORPUS. PENAL. FUNDAMENTAÇÃO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. ARTS. 43 E 44 DO CP.

O princípio do livre convencimento exige fundamentação concreta, vinculada, do ato decisório. A escolha das penas restritivas de direito dentre as previstas no art. 43 do CP, sem apontar qualquer fundamento, não preenche as exigências constitucionais e infra-constitucionais (art. 93, inciso IX, 2.ª parte da Carta Magna e arts. 157, 381 e 387 do CPP). Não se pode confundir livre convencimento com convicção íntima (Precedentes).

Writ concedido.”

(HC 14894/RS, 5.ª Turma, de minha relatoria, DJU de 13/08/2001).

Concedo, pois, parcialmente a ordem, anulando-se o v. julgado tão-somente na parte que substituiu a pena privativa de liberdade.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Gilson Dipp, Jorge Scartezzini e Laurita Vaz.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.