Responsabilidade Civil. Notário. Legitimidade passiva ad causam. Responsabilidade objetiva do Estado. Danos causados pelo titular de serventia extrajudicial não-oficializada. Precedentes.

EMENTA

A responsabilidade civil por dano causado a particular por ato de oficial do Registro de Imóveis é pessoal, não podendo o seu sucessor, atual titular da serventia, responder pelo ato ilícito praticado pelo sucedido, antigo titular. Precedentes.

Recurso especial provido.

(STJ/DJU de 27/11/06)

Trata-se de recurso especial, com fulcro nas alíneas ?a? e ?c? do permissivo constitucional, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco.

Consta do voto do Relator:

O Exmo. sr. Ministro Castro Filho (Relator): De início, é de se destacar que o recurso especial não é meio idôneo para apreciação de violação a dispositivo constitucional.

Quanto à ilegitimidade passiva ad causam da tabeliã, ora recorrente, e legitimidade do Estado de Pernambuco, o tema em questão não é novo nesta Corte.

Esta colenda Turma, no julgamento do RESP 443.467/PR, sob minha relatoria (DJ de 1/7/2005), concluiu que a responsabilidade civil por ato ilícito praticado por oficial do Registro de Imóveis é pessoal, não podendo o seu sucessor (atual titular da serventia) responder por ato danoso praticado pelo sucedido (anterior titular).

O artigo 236 da Constituição Federal consagrou os serviços notariais e registrais como serviços públicos executados em regime privado, porém, por delegação do Poder Público e sob sua supervisão e fiscalização, através do Judiciário, sendo que a Lei n.º 8.935/94 regulamentou o dispositivo em comento, dispondo sobre os serviços notariais e de registro.

No que tange à responsabilidade dos titulares das serventias extrajudiciais, dispõe o artigo 22 desse diploma legal que: ?Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso, no caso de dolo ou culpa de seus prepostos.?

Com efeito, ao receber a delegação, o titular da serventia passa a executar o serviço por sua conta e risco. Ele é quem vai arcar com todas as despesas, do aluguel do prédio ao pagamento de pessoal, contratando empregados de sua confiança para a realização do trabalho. Ao assim proceder, assume todos os riscos do serviço, substituindo integralmente o Estado naquela atividade. E, juntamente com os riscos, o delegado assume também todas as responsabilidades e conseqüências decorrentes da atividade.

Nesse passo, para a recomposição do dano patrimonial causado por quem, em hipótese como a dos autos, atuava investido de função de natureza pública, pode aquele que se sentir lesado acionar o próprio cartório – em face de sua condição de ?pessoa formal? (REsp 476.532/RJ, DJ 4/8/2003, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar), exclusivamente o Estado, por força de sua responsabilidade objetiva – conforme Caio Mário da Silva Pereira, Carlos Roberto Gonçalves e José Renato Nalini -, ou diretamente o responsável pelo ato ilícito, in casu, o titular notarial. Afinal, conforme observação de Celso Antônio Bandeira de Mello, ?a norma constitucional que estabelece a responsabilidade objetiva do Estado, nitidamente posta para proteger os administrados, não cria quaisquer restrições nesse campo da legitimação passiva.? (Responsabilidade do funcionário por ação direta do lesado, in Revista de Direito Público 77/39).

A regra é a de que, por se tratar de serviço prestado por delegação do Estado, desinfluente se torna para o usuário saber quem ocupa a titularidade da serventia, desde que, diante de um eventual prejuízo, pretenda ele responsabilizar diretamente o cartório ou o próprio Poder Público, aplicando-se, neste último caso, as regras da responsabilidade objetiva, consagrada no artigo 37, § 6.º, da Constituição Federal. Diversa, contudo, é a hipótese em análise, tendo em vista que as instâncias ordinárias concluíram como responsável, direta e exclusivamente, a tabeliã, sucessora, só agora responsável pela serventia judicial.

Nesse passo, assentada a premissa da possibilidade de responsabilização individual e pessoal da titular do cartório, é de se reconhecer a incorreção do acórdão recorrido ao afastar a responsabilidade do antigo oficial.

Nessa linha de raciocínio, é de se ter presente que só poderia mesmo responder como titular do cartório aquele que efetivamente ocupava o cargo à época da prática do fato reputado como lesivo aos interesses dos autores, razão pela qual não poderia tal responsabilidade ser transferida ao agente público que o sucedeu.

De outro lado, quanto à legitimidade passiva do Estado de Pernambuco, é de se lembrar o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que, mesmo durante a vigência da Constituição de 1969, ?os titulares de ofícios de Justiça e de notas, quer do foro judicial, quer do foro extrajudicial (e, portanto, também os tabeliães), eram servidores públicos e por seus atos praticados nessa qualidade respondia o Estado, com base no artigo 107, pelos danos por eles causados a terceiros, embora esse dispositivo constitucional não impedisse que a vítima do dano, se preferisse, acionasse diretamente o servidor público com fundamento no artigo 159 do Código Civil? (RE 116.662/PR, 1.ª Turma, Min. Moreira Alves, DJ de 16/10/1998). No mesmo sentido, o RE 99.214/RJ, 2.ª Turma, Min. Moreira Alves, DJ de 20/5/1983, sintetizado na seguinte ementa:

?RESPONSABILIDADE CIVIL. EXEGESE DO ARTIGO 107 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO DIRETA CONTRA O SERVIDOR PÚBLICO COM BASE NO ARTIGO 159 DO CÓDIGO CIVIL. O ARTIGO 107 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO IMPEDE QUE A VÍTIMA DE DANO DECORRENTE DE ATO DE SERVIDOR PÚBLICO ? COMO O É O SERVENTUÁRIO DA JUSTIÇA, AINDA QUE DE SERVENTIA NÃO OFICIALIZADA ? PROPONHA CONTRA ESTE AÇÃO DIRETA, COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 159 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO, MAS NÃO PROVIDO.?

A promulgação da Carta de 1988 em nada alterou esse entendimento, conforme se verifica, por todos, do Ag Rg no RE 209.354/PR, 2.ª Turma, Min. Carlos Velloso, DJ de 16/4/1999, assim ementado:

?CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. TABELIÃO. TITULARES DE OFÍCIO DE JUSTIÇA: RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. C.F., ART. 37, § 6.º.I. – Natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidas em caráter privado, por delegação do Poder Público. Responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceiros por esses servidores no exercício de tais funções, assegurado o direito de regresso contra o notário, nos casos de dolo ou culpa (C.F., art. 37, § 6.º).

II. – Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido.?

Outro não é o entendimento esposado por esta Corte:

?ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO PELOS DANOS CAUSADOS PELOS TITULARES DE SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS NÃO-OFICIALIZADAS.

1. Já na vigência da Constituição de 1969, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal afirmava que ?os titulares de ofícios de Justiça e de notas, quer do foro judicial, quer do foro extrajudicial (e, portanto, também os tabeliães), eram servidores públicos e por seus atos praticados nessa qualidade respondia o Estado, com base no artigo 107, pelos danos por eles causados a terceiros, embora esse dispositivo constitucional não impedisse que a vítima do dano, se preferisse, acionasse diretamente o servidor público com fundamento no artigo 159 do Código Civil? (RE 116.662/PR, 1.ª Turma, Min. Moreira Alves, DJ de 16/10/1998). Tal orientação foi reiterada após a promulgação da Carta de 1988 (por todos, do AgRg RE 209.354/PR, 2.ª Turma, Min. Carlos Velloso, DJ de 16/4/1999).

2. No caso concreto, portanto, deve ser reconhecida a legitimidade do Estado de Goiás para figurar no pólo passivo da ação de indenização por danos causados por titular de serventia extrajudicial não-oficializada.

3. Recurso especial provido, com a determinação do retorno dos autos ao Tribunal de origem, para que aprecie as demais questões suscitadas na apelação.?

(RESP n.º 481.939/GO, Rel. Min. Teori Albino Zavaski, DJ de 21/03/2005).

Conforme se verifica pelos precedentes indicados, a circunstância de ser ou não oficializada a serventia, ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido, é irrelevante para efeito de fixação do regime de responsabilidade pelos danos causados a terceiros por seus titulares e respectivos prepostos, no desempenho do serviço público.

Pelas razões expostas, dou provimento ao recurso especial, para acolher a preliminar de ilegitimidade passiva da ora recorrente, excluindo-a da relação processual. E, para atender à sistemática adotada pela douta Turma, embora com ressalvas, aplicando o direito à espécie, julgo improcedente o pedido.

Custas e honorários pela sucumbente, estes no valor de 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Humberto Gomes de Barros, Ari Pargendler, Carlos Alberto Menezes Direito e Nancy Andrighi.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.