Responsabilidade civil. Estado de necessidade em razão de fato de terceiro. Dever de indenizar, com direito regressivo.

RECURSO ESPECIAL N.º 209.062 – RIO DE JANEIRO

REL.: MIN. RUY ROSADO DE AGUIAR

EMENTA

A empresa responde pelo dano sofrido por passageira que sofre queda no interior do coletivo, provocada por freada brusca do veículo, em decorrência de estilhaçamento do vidro do ônibus provocado por terceiro.

– O motorista que age em estado de necessidade e causa dano em terceiro que não provocou o perigo, deve a este indenizar, com direito regressivo contra o que criou o perigo. Arts. 160, II, 1.519 e 1.520 do C. Civil.

Recurso não conhecido.”. (STJ/DJU de 5/8/02, pág. 345)

Se alguém, da rua, atira uma pedra no ônibus e vem a ferir um passageiro, a responsabilidade da transportadora fica afastada em razão do fato de terceiro. Porém, se essa pedrada quebra o vidro do ônibus e o motorista, em razão disso, freia bruscamente o veículo, vindo o passageiro a cair e a sofrer lesões, a empresa tem o dever de responder pelos danos sofridos, porque o dano causado em razão do estado de necessidade não afasta o dever de indenizar, cabendo o direito de regresso.

Assim decidiu a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Ruy Rosado de Aguiar, com o seguinte voto:

O exmo. sr. ministro Ruy Rosado de Aguiar

O r. acórdão recorrido, de lavra do em.des. Luiz Fux, fez a precisa distinção entre fato de terceiro que, por si só, é causa suficiente para a produção do dano, como acontece quando uma pedra é jogada contra o passageiro e neste produz lesão, do fato de terceiro que provoca reação de parte do motorista do ônibus, cuja ação é a causa imediata da lesão. Essa conduta do motorista do veículo, ainda que em estado de necessidade, como acontece na hipótese, pois se encontrava debaixo do perigo provocado pelo agressor, foi o fator determinante da queda da autora no interior do ônibus, e por ela responde o motorista, ou o seu empregador, no caso de responsabilidade transubjetiva, como ocorre na espécie. Embora lícita a conduta de quem se encontra debaixo de perigo provocado por outrem, o necessitado responde pelo dano que causa em terceiro que não dera origem ao perigo (estado de necessidade agressivo).

Obrigado a movimento brusco, age licitamente, mas tem a obrigação (ele ou o seu empregador) de reparar o dano que atingiu terceiro alheio ao perigo. Isso porque na ponderação dos interesses em jogo, o legislador acertadamente preferiu resguardar o terceiro lesado que nada fez, para atribuir a responsabilidade direta a quem, embora em estado necessário, praticou uma ação, ressalvado a este o direito de regresso contra quem colocou o perigo.

Um dos princípios sobre o qual o nosso sitema de responsabilidade civil está construído é o de que o ato lícito não gera indenização. A regra sofre exceções, porém, em algumas situações específicas, como as que decorrem do risco – onde se pode indenizar dano sem conduta ilícita – e a contemplada no art. 160, inc. II, do Civil, que descreve um comportamento lícito mas, nos termos dos arts. 1.519 e 1.520 do Civil, gerador da obrigação de reparar o dano causado pelo necessitado contra terceiro que não provocou o perigo.

Assim, o motorista que, para salvar-se de perigo posto por outrem, atinge terceiro que não provocou o perigo, embora aja licitamente, tem o dever de indenizar. Além disso, deve ser lembrado que o contrato de transporte cria para o transportador uma obrigação de resultado, e o fato de terceiro, no caso, não foi a causa imediata do dano que se quer aqui indenizar.

Sendo assim, acertada a solução dada ao caso, sem que seja possível vislumbrar no r. acórdão a apontada contradição, em razão exatamente da distinção que deve ser feita para situação como a dos autos, que não se confunde com outras, mencionadas na doutrina e nos precedentes referidos pela recorrente.

Posto isso, não conheço do recurso.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Aldir Passarinho, Barros Monteiro e César Asfor Rocha.

Penal. Fixação da Pena. Reincidência. Dupla valoração Inadmissibilidade

“HABEAS CORPUS N.º 19.774 ? RJ

REL.: MIN. HAMILTON CARVALHIDO

EMENTA ? A dupla consideração da reincidência na dosimetria da pena, vale dizer, como desfavorável circunstância judicial, e como agravante genérica, viola, induvidosamente, o princípio ne bis in idem, devendo, pois, ser reparada na via do remédio heróico.

Ordem concedida para afastar a agravante da reincidência da condenação do paciente e, conseqüentemente, reduzir a pena infligida.”

(STJ/DJU de 24/06/02, pág. 347).

Como se vê por esta decisão, a Sexta turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o Ministro Hamilton Carvalhido, admitiu, mesmo em sede de “habeas corpus”, a revisão do quantitativo da pena, quando bem caracterizada a ilegalidade e o abuso de poder na sua aplicação, conforme sucede quando a reincidência é duplamente valorada: como antecedente, na pena-base, e como gravante.

Consta do voto do relator:

Lê-se da sentença condenatória, no particular:

“(…)

Atento aos dizeres do art. 59 e 60 do Código Penal, constato que ambos os sentenciados registram anotações anteriores em suas vitae anteacta (FACS de fls. 59/60 ? 1.º acusado e 56/57 ? 2.º denunciado).

Desde os idos de 1991 e 1992 vêm eles se envolvendo em crimes de uso de tóxicos e de roubo. Assim, o grau de reprovação das condutas em julgamento assume especial relevo, patenteando intenso dolo informador das mesmas.

De acrescentar que o tráfico de drogas entorpecente transformou-se em verdadeiro câncer no seio da sociedade moderna, não distingüindo entre suas vítimas crianças ou adolescentes, homens ou mulheres, pessoas honestas ou já ingressas na senda de crimes outros.

Urge pronta e enérgica atuação dos Poderes Públicos no sentido da prevenção e da repressão de crime tão grave e destruidor da pessoa humana.

Por tais motivos, fixo-lhes as penas-base acima dos respectivos mínimos em quatro anos de reclusão e cinqüenta e cinco dias-multa, ao valor unitário mínimo da Lei de Entorpecentes, para cada qual. Em face da reconhecida reincidência de ambos os sentenciados (art. 61. I, CP), elevo-as para quatro anos e seis meses de reclusão e sessenta dias-multa.

Por último, em face da incidência do art. 18, inc. III, do mesmo diploma legal especial, aumento-as de um terço, o que soma seis anos de reclusão e pagamento de oitenta dias-multa, à razão unitária declinada.

À míngua de causas outras que possam modificar os quantitativos assim fixados, torno-os definitivos.” (fls. 24/25).

A fundamentação das decisões do Poder Judiciário, tal como resulta da letra do inciso IX do artigo 93 da Constituição da República, é condição absoluta de sua validade e, portanto, pressuposto da sua eficácia, substanciando-se na definição suficiente dos fatos e do direito que a sustentam, de modo a certificar a realização da hipótese de incidência da norma e os efeitos dela resultantes.

Daí porque, afora casos excepcionais de caracterizadas ilegalidades ou abuso de poder, fazem-se estranhos ao âmbito estreito e, pois, ao cabimento do habeas corpus, os pedidos de modificação ou de reexame do juízo de individualização da sanção penal, na sua quantidade e no estabelecimento do regime inicial do cumprimento da pena de prisão, enquanto requisitam a análise aprofundada dos elementos dos autos, referentes ao fato criminoso, às suas circunstâncias, às suas conseqüências, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade e aos motivos do agente, bem como ao comportamento da vítima.

Nesse sentido, vale conferir, por todos, os seguintes precedentes do Egrégio Supremo Tribunal Federal:

HABEAS CORPUS PROVA. REEXAME.

IMPOSSIBILIDADE. DEFESA DEFICIENTE. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. SÚMULA 523 DO STF.

Não há como, em habeas corpus, proceder a um exame individualizado das circunstâncias judiciais invocadas na condenação.

A alegação de deficiência da defesa deve vir acompanhada de demonstração do prejuízo ? Súmula 523 do STF. Ausência da ilegalidade.” (HC 70.312/SP, Relator Ministro Francisco Rezek, in DJ 10.5.96).

“Habeas Corpus. 2. Decisum condenatório devidamente fundamentado. Confirmação pelo acórdão do Tribunal a quo. 3. Circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal desfavoráveis ao réu. 4. Inviabilidade de reexame de fatos e provas na via especial. 5. Habeas corpus indeferido.” (HC 80.630/PB, relator Ministro Néri da Silveira, in DJ 8/6/2001).

“Habeas Corpus. 2. Impetração anterior, em que se atacava, principalmente, o regime inicial de cumprimento da pena ? o regime fechado, pretendendo o regime aberto. HC n.º 74.332-3/RJ indeferido. 3. Na presente impetração, impugna-se a pena imposta no acórdão, elevada para três anos de reclusão 4.

Descabidas as alegações de desrespeito ao método trifásico e de não caracterização da continuidade delitiva. Fixação da pena-base, atendidas as circunstâncias judiciais art. 59, do CP. 5.

Reexame das provas havidas na instrução criminal inviável nesta via. 6. Habeas corpus indeferido.” (HC 74.501/RJ, Relator Ministro Néri da Silveira, in DJ 15/12/2000).

Na espécie, contudo, ao que se tem da sentença e do acórdão que a preservou, respondendo à sua impugnação pelo réu, e, pois, nos limites do efeito devolutivo amplo do recurso apelativo, faz-se ajustada a pena-base de 4 anos aos próprios do artigo 59 do Código Penal, violando a lei, contudo, o seu agravamento em 6 meses, por força da reincidência, eis que os antecedentes do paciente já haviam sido considerados na sentença, quando da primeira fase da dosimetria e, desta dimensão não foram excluídos do acórdão, o que significa violação do princípio ne bis in idem.

A pena, assim, deve ser definida com exclusão do quantum de agravamento pela reincidência, fixando-se em 5 anos e 4 meses de reclusão, que se alcança, a partir da pena-base de 4 anos, que se aumenta de 1/3 por força do artigo 18, inciso III da Lei 6.368/76.

De igual forma, a pena pecuniária, que, partindo do patamar de 55 dias-multa, é aumentada de 1/3, donde se atinge a quantia final de 73 dias-multa, no valor mínimo legal.

Pelo exposto, concedo a ordem para afastar a agravante da reincidência, restando a condenação final do paciente fixada em 5 anos e 4 meses de reclusão e 73 dias multa.

É o voto

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Fontes de Alencar, Vicente Leal e Fernando Gonçalves.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.