Responsabilidade Civil. Abandono moral. Reparação. Indenização por danos morais. Impossibilidade.

EMENTA  

1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária.

2. Recurso especial conhecido e provido.

(STJ/DJU de 27/03/06, pág. 299)

Partindo do pressuposto de que a indenização por dano moral reclama a prática de ato ilícito, decidiu a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Fernando Gonçalves, que o abandono afetivo não comporta indenização pecuniária.

Consta o voto do Relator:

O Exmo. Sr. Ministro Fernando Gonçalves (Relator):

A questão da indenização por abandono moral é nova no Direito Brasileiro. Há notícia de três ações envolvendo o tema, uma do Rio Grande do Sul, outra de São Paulo e a presente, oriunda de Minas Gerais, a primeira a chegar ao conhecimento desta Corte.

A demanda processada na Comarca de Capão da Canoa-RS foi julgada procedente, tendo sido o pai condenado, por abandono moral e afetivo da filha de nove anos, ao pagamento de indenização no valor correspondente a duzentos salários mínimos. A sentença, proferida em agosto de 2003, teve trânsito em julgado, vez que não houve recurso do réu, revel na ação. Cumpre ressaltar que a representante do Ministério Público que teve atuação no caso entendeu que ?não cabe ao Judiciário condenar alguém ao pagamento de indenização por desamor?, salientando não poder ser a questão resolvida com base na reparação financeira.

O Juízo da 31.ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo-SP, a seu turno, condenou um pai a indenizar sua filha, reconhecendo que, conquanto fuja à razoabilidade que um filho ingresse com ação contra seu pai, por não ter dele recebido afeto, ?a paternidade não gera apenas deveres de assistência material, e que além da guarda, portanto independentemente dela, existe um dever, a cargo do pai, de ter o filho em sua companhia?.

A matéria é polêmica e alcançar-se uma solução não prescinde do enfrentamento de um dos problemas mais instigantes da responsabilidade civil, qual seja, determinar quais danos extrapatrimoniais, dentre aqueles que ocorrem ordinariamente, são passíveis de reparação pecuniária. Isso porque a noção do que seja dano se altera com a dinâmica social, sendo ampliado a cada dia o conjunto dos eventos cuja repercussão é tirada daquilo que se considera inerente à existência humana e transferida ao autor do fato. Assim situações anteriormente tidas como ?fatos da vida?, hoje são tratadas como danos que merecem a atenção do Poder Judiciário, a exemplo do dano à imagem e à intimidade da pessoa.

Os que defendem a inclusão do abandono moral como dano indenizável reconhecem ser impossível compelir alguém a amar, mas afirmam que ?a indenização conferida nesse contexto não tem a finalidade de compelir o pai ao cumprimento de seus deveres, mas atende duas relevantes funções, além da compensatória: a punitiva e a dissuasória. (Indenização por Abandono Afetivo, Luiz Felipe Brasil Santos, in ADV – Seleções Jurídicas, fevereiro de 2005).

Nesse sentido, também as palavras da advogada Cláudia Maria da Silva: ?Não se trata, pois, de ?dar preço ao amor? como defendem os que resistem ao tema em foco – , tampouco de ?compensar a dor? propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave.? (Descumprimento do Dever de Convivência Familiar e Indenização por Danos à Personalidade do Filho, in Revista Brasileira de Direito de Família, Ano VI, n.º 25 Ago-Set 2004)

No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral.

Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso.

No caso em análise, o magistrado de primeira instância alerta, verbis:

?De sua vez, indica o estudo social o sentimento de indignação do autor ante o tentame paterno de redução do pensionamento alimentício, estando a refletir, tal quadro circunstancial, propósito pecuniário incompatível às motivações psíquicas noticiadas na Inicial (fls. 74)

(…)

Tais elementos fático-probatórios conduzem à ilação pela qual o tormento experimentado pelo autor tem por nascedouro e vertedouro o traumático processo de separação judicial vivenciado por seus pais, inscrevendo-se o sentimento de angústia dentre os consectários de tal embate emocional, donde inviável inculpar-se exclusivamente o réu por todas as idiossincrasias pessoais supervenientes ao crepúsculo da paixão.? (fls. 83)

Ainda outro questionamento deve ser enfrentado. O pai, após condenado a indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá definitivamente afastado daquele pela barreira erguida durante o processo litigioso?

Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o amparo do amor dos filhos, valendo transcrever trecho do conto ?Para o aniversário de um pai muito ausente?, a título de reflexão (Colocando o ?I? no pingo… E Outras Idéias Jurídicas e Sociais, Jayme Vita Roso, RG Editores, 2005):

?O Corriere della Sera, famoso matutino italiano, na coluna de Paolo Mieli, que estampa cartas selecionadas dos leitores, de tempos em tempos alguma respondida por ele, no dia 15 de junho de 2002, publicou uma, escrita por uma senhora da cidade de Bari, com o título ?Votos da filha, pelo aniversário do pai?.

Narra Glória Smaldini, como se apresentou a remetente, e escreve: ?Caro Mieli, hoje meu pai faz 67 anos. Separou-nos a vida e, no meu coração, vivo uma relação conflitual, porque me considero sua filha ´não aproveitada´. Aos três anos fui levada a um colégio interno, onde permaneci até a maioridade. Meu pai deixara minha mãe para tornar a se casar com uma senhora. Não conheço seus dois outros filhos, porque, no dizer dele, a segunda mulher ´não quer misturar as famílias´.

Faz 30 anos que nos relacionamos à distância, vemo-nos esporadicamente e presumo que isso ocorra sem que saiba a segunda mulher. Esperava que a velhice lhe trouxesse sabedoria e bom senso, dissipando antigos rancores. Hoje, aos 39 anos, encontro-me ainda a esperar. Como meu pai é leitor do Corriere, peço-lhe abrigar em suas páginas meus cumprimentos para meu pai que não aproveitei.?

Por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido, não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme acima esclarecido.

Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada.

Nesse contexto, inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 159 do Código Civil de 1916, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de indenização.

Diante do exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento para afastar a possibilidade de indenização nos casos de abandono moral.

Decisão por maioria, votando com o Relator os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e César Asfor Rocha.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.