Recurso especial. Furto qualificado. Direito Processual Penal. Ausência de apelação do Ministério Público. Condenação por crime mais grave na instância excepcional. Incabimento. Correlação entre a acusação e a sentença.RECURSO ESPECIAL N.º 623.247-DF
Rel.: Min. Hamilton Carvalhido

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EMENTA

1. Não recorrendo o Ministério Público da sentença que julgou procedente a denúncia tal como oferecida, não se pode pretender, em sede excepcional, condenação por crime mais grave, ante o trânsito em julgado, nesse tanto, da condenação.
2. Benéfica ao réu a denúncia, quanto à classificação jurídica dos fatos, assim julgada procedente na sentença, é defeso invocar, em sede de recurso exclusivo do réu, a incidência da norma do artigo 384 do Código de Processo Penal, devendo o Tribunal apreciar o pleito absolutório da condenação, como decretada.
3. Recurso parcialmente conhecido e provido.
(STJ/DJU de 4/8/08)

No Juízo de 1.º Grau, a ré foi denunciada por furto qualificado. Sobrevindo sentença condenatória, dela houve recurso exclusivo da defesa, pleiteando a absolvido por negativa de autoria. A Corte Estadual de Justiça, entendendo caracterizado roubo simples ao invés de furto qualificado, absolveu a ré por ser caso de “emendatio libeli”, vedado em segundo grau de jurisdição.

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Interpôs, então, o Ministério Público recurso especial, por entender que o caso é de “emendatio libelli”, pugnando pela condenação da acusada pelo delito tipificado no art. 157, caput, do Código Penal, com pena limitada à imposta em primeiro grau, por força da proibição à “reformatio in pejus”.

Na instância extraordinária, o Superior Tribunal de Justiça, por sua Sexta Turma, considerou que em sede de apelação, cabia ao Tribunal decidir dentro da classificação com que a apelante havia sido contemplada, absolvendo-a do crime em que foi condenada, se prova não houver de autoria do fato, que é induvidosamente criminoso.

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Decisão unânime, votando com o Relator, Ministro Hamilton Carvalhido, os Ministros Maria Thereza de Assis Moura, Carlos Fernando Mathias (Juiz convocado do TRF 1.ª Região) e Nilson Naves.
Consta do voto do Relator:

O Exmo. sr. Ministro Hamilton Carvalhido (Relator): Senhor Presidente, recurso especial interposto pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal, contra acórdão da Primeira Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios que, dando provimento ao apelo de Marilda Terezinha Macera Gomes, absolveu-a, “ante a impossibilidade de mutatio libelli em segunda instância”, da prática do crime tipificado no artigo 155, parágrafo 4.º, inciso II, do Código Penal, assim ementado:

“PENAL. PROCESSUAL PENAL. CONDENAÇÃO POR FURTO MEDIANTE FRAUDE. DESCRIÇÃO DOS FATOS INDICATIVOS DE ROUBO. INGESTÃO PELA VÍTIMA DE SUBSTÂNCIA QUE IMPOSSIBILITOU SUA RESISTÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE OCORRÊNCIA DE MUTATIO LIBELLI EM SEGUNDA INSTÂNCIA. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE.

III. Evidenciada nos autos a prática do crime de roubo, previsto no art. 157 do Código Penal, com a utilização de substância narcótica, meio que impossibilitou a defesa da vítima, e não crime de furto qualificado pela fraude, tal como descrito na denúncia e acolhido pelo sentenciante, impõe-se a absolvição da apelante, ante a impossibilidade de mutatio libelli em segunda instância.
IV. Recurso provido. Maioria.” (fl. 194).

Narram os autos que a ora recorrida foi denunciada pelo delito tipificado no artigo 155, parágrafo 4.º, inciso II, do Código Penal, imputação essa mantida em alegações finais e, ao final, acolhida pelo magistrado singular, para condenar a ré a 2 anos e 3 meses de reclusão.

Houve recurso exclusivo da defesa, pleiteando a absolvição por negativa de autoria. A Corte Estadual de Justiça, por sua vez, porque caracterizado roubo simples ao invés de furto qualificado, absolveu a ré, entendendo ser caso de mutatio libelli, vedado em segundo grau de jurisdição.

Daí a interposição do presente recurso especial do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios, em que, entendendo trata-se de emendatio libelli, se pugna a condenação da acusada pelo delito tipificado no artigo 157, caput, do Código Penal, com pena limitada à imposta em primeiro grau, por força da proibição à reformatio in pejus.

A insurgência especial está fundada na violação dos artigos 157, caput, do Código Penal e 383 e 384 do Código de Processo Penal.

E os teria violado, eis que “(…) porquanto descrito na denúncia o roubo, perfazendo-se a hipótese de emendatio libelli, cujo reconhecimento pelo Tribunal de Apelação não encontra óbice legal ou sumular, não existindo prejuízo para a ré quando mantida a condenação no patamar estabelecido pela r. sentença condenatória, modificado, apenas, o fundamento da condenação (de furto para roubo)” (fl. 222).

Sustenta o Parquet, ainda, que “(…) se o aresto, por maioria, estimou tipificado o roubo e que tal crime está descrito, por completo, na peça acusatória – como, aliás, se constata de breve leitura da denúncia – outra solução não haveria senão fazer adequação do fundamento legal do veredito, a chamada emendatio libelli, e condenar o réu pelo crime efetivamente cometido” (fl. 222).

Aduz, mais, que “afigura-se evidente ainda que, procedida à emenda, a condenação por roubo em nada prejudicaria a ré nem estará vinculada a recurso do Ministério Público: a falta do apelo apenas e somente limitará a pena àquela imposta em 1.ª instância contra a acusada” (fl. 223).

Assevera, por fim, que “(…) a hipótese, como salta aos olhos, não seria jamais de mutatio mas sim de emendatio libelli, descrita na denúncia ter sido a vítima dopada para a subtração da res, elemento requisitado pelo em. Relator para a tipificação do roubo” (fl. 224).

Pugna, ao final, pelo provimento do recurso, para que “(…) procedida à corrigenda na fundamentação (de furto: CP, art. 155, § 4.º, inc. II para roubo: CP, art. 157) de sentença, sejam mantidos a condenação da ré, a pena e os demais consectários do veredito proferido em 1.º grau” (fl. 224).

É esta a letra da denúncia:

“(…)
MARILDA TEREZINHA MACERA GOMES, qualificada às fls. 20 dos autos do incluso Inquérito Policial n.º 11.357/93- 12.ª DP, que a este serve de base, pela prática da ação delituosa a seguir narrada.

Consta que a vítima MARIA DO SOCORRO TEIXEIRA DE MACEDO, após acerto preliminar por telefone, marcou um encontro coma pessoa de MAURA DE JESUS, que lhe venderia uma linha telefônica, em frente à Telebrasília, no centro desta Satélite.

Ocorre que a denunciada, ouvindo as negociações de ambas, ofereceu à vítima uma linha telefônica por preço inferior, alegando necessidade urgente de dinheiro, tendo-se, na ocasião, apresentado com o nome de Márcia.

Tendo a vítima concordado em fazer o negócio com a denunciada, esta pediu-lhe uns instantes para fazer uma ligação pedindo que lhe trouxessem o respectivo contrato.

Cerca de dez minutos após, a denunciada retornou trazendo consigo dois copos de suco de laranja, oferecendo um deles à vítima, insistindo para que o aceitasse. Embora a vítima tenha achado o sabor do suco meio amargo, ingeriu-o.

Passadas uns quinze minutos a vítima começou a suar frio, suas vistas escureceram e foi acometida de um sono profundo, a ponto de perder o controle de seus atos.

A denunciada encaminhou a vítima a um táxi, onde subtraiu para si a importância de CR$ 70.000,00 (setenta mil cruzeiros reais), trezentos e vinte dólares, um talão de cheques do BRB, contra corrente n.º 053.110.361-7, um cartão SOLO e a carteira de identidade da vítima, bens de propriedade deste que se encontravam na bolsa da mesma.

Ressalte-se que a vítima perdera os sentidos, somente recobrando-os cerca de três horas depois, ao ser acordada pelo motorista de táxi que exigia o pagamento da corrida, afirmando que a denunciada foi embora.

Estando assim incursa nas penas do art. 155, § 4.º, inciso II, do Código Penal Brasileiro, requer o abaixo assinado se instaure processo crime, citando-se a denunciada para todos os seus termos, pena de revelia, e intimando-se as testemunhas abaixo arroladas para deporem sobre o fato supra, sob as penas da lei.

(…)” (fls. 2/3).
E esta, a do acórdão impugnado, que absolveu a ora recorrida:
“(…)
Presentes os pressupostos de admissibilidade do recurso, dele se conhece.

Pleiteia a apelante a absolvição, argumentando, basicamente, que inexistem nos autos provas suficientes de que tenha sido ela a autora do crime de furto qualificado.

A materialidade do crime ficou demonstrada pelo boletim de ocorrência, acostado às fls. 08/09, assim como pelas declarações prestadas pela ofendida, tanto em inquérito como em Juízo, onde confirma a subtração de alguns objetos pessoais, entre eles, dinheiro, cheques e outros documentos.

A autoria delitiva, por seu turno, apesar de não haver comprovação do momento exato da subtração levada a efeito, não há como afastar a responsabilização penal da acusada pelo cometimento do crime de furto qualificado pela fraude na sua conduta.

Na hipótese, verifica-se que a dinâmica dos fatos se deu conforme evidenciado na peça acusatória, tendo a vítima, após diálogo com uma senhora (Maura de Jesus) com vistas à aquisição de uma linha telefônica, sido abordada pela ré, a qual se ofereceu para efetuar a venda de outra linha a ela, por um preço aquém do exigido pela mencionada senhora, o que foi aceito pela ofendida, momento em que a acusada, saiu do local dos fatos, retornando, em seguida, com um copo de suco, que foi oferecido à vítima e que a fez perder os sentidos, por motivos não determinados pelo laudo de exame de fl. 22, ocasião em que a ré entrou no interior de um táxi com a vítima, alegando que iria levá-la a um hospital, tendo esta acordado horas depois sem alguns objetos pessoais, subtraídos de sua bolsa.

Como se vê, mesmo não sendo preciso o momento da referida subtração, resta evidente nos autos que a ora apelante, ao fazer com que a vítima ingerisse alguma substância entorpecente, tinha a manifesta intenção de apossar-se, principalmente, do dinheiro da vítima, que seria utilizado para a compra de uma linha telefônica.

Relativamente ao nexo causal existente entre a conduta da apelante e o resultado ou evento lesivo ocorrido, observa-se que a MM.ª Juíza sentenciante, de forma precisa, já assentou o seguinte (fl. 164):
“… partindo-se de tal premissa, deve merecer crédito a informação da vítima, corroborada pela que prestada a testemunha MAURA DE JESUS: a acusada entregou à vítima copo de líquido que se assemelhava a suco de laranja. Aceita tal conclusão, chega-se à subseqüente: o suco continha alguma substância que, muito embora não se possa definir qual, foi suficiente a fazer a vítima sentir-se mal na forma como mencionou (falta de ar, taquicardia, língua enrolada, tontura, sonolência). Impossível deixar-se de estabelecer a relação entre a conduta da acusada e o estado da vítima. Na seqüência, o desaparecimento dos valores, que deve ser imputado direta e isoladamente à acusada, ou pelo menos, com o seu concurso.

Tal forma de agir está a demonstrar claramente a fraude na conduta, pelo que perfeita a subsunção dos fatos em comento ao que previsto abstratamente na norma penal incriminadora pretendida.”

Demais disso, não se pode olvidar que todas as declarações prestadas pela acusada foram bastante contraditórias, ora afirmando não se encontrar no Distrito Federal no dia dos fatos e que a testemunha Maura de Jesus e a vítima estariam querendo prejudicá-la, ora simplesmente negando a autoria delitiva, onde se verifica que restaram totalmente isoladas do conjunto probatório carreado aos autos.

Todavia, o que se constata, analisando a dinâmica dos fatos ocorridos, é que não ficou comprovada a eventual fraude praticada pela acusada com vista à subtração dos pertences da vítima, já que, segundo orientação doutrinária, esta evidencia-se quando o agente utiliza-se de qualquer meio enganoso capaz de iludir a vítima enquanto comete propriamente o crime de furto, subtraindo, para si ou para outrem, coisa alheia móvel, como por exemplo no caso do agente que, prontificando-se a ajudar a vítima a efetuar operação em caixa eletrônico, subtrai seu numerário sem que perceba.

Na hipótese, ao contrário, verifica-se que a acusada utilizou-se de um meio que impossibilitou, de qualquer forma, a defesa da vítima, fazendo com que a ofendida ingerisse um suco contendo substância capaz de inebriá-la, a ponto de não conseguir oferecer qualquer resistência à subtração de seus bens pessoais. Posto isso, verifica-se que a capitulação legal que efetivamente se subsume aos fatos descritos na denúncia é aquela contida no caput do art. 157 do CP, na sua parte final e não àquela estabelecida na peça acusatória, relativamente à prática do crime de furto qualificado pela fraude.

Bem a propósito, evidencia-se o aresto a seguir: “Mesmo que se admita tenha a vítima sido subjugada mediante o uso de narcótico, ainda subsistirá o roubo, marcado não só pelo emprego de violência ou grave ameaça, como pelo uso de qualquer meio que prive aquela do poder de agir, depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido a impossibilidade de resistência.” (RT 440/428)

Posto isso, crê-se ser hipótese de mutatio libelli, estabelecida no artigo 384, parágrafo único, do Código de Processo Penal, posto que os elementos de prova coligidos aos autos informam a possibilidade de definição jurídica que importa imposição de pena mais grave à apelante. Entretanto, diante do que estabelece a Súmula n.º 453 do e. Supremo Tribunal Federal, no sentido de que “não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do CPP, que possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida explícita ou implicitamente na denúncia ou queixa”, a solução que se impõe é a absolvição da ré, nos termos do art. 386, inciso IV, do CPP, já que inexiste nos autos prova inequívoca de ter a acusada praticado o crime de furto.

Nesse sentido caminha a jurisprudência dominante, onde se destaca o seguinte julgado: “TACRSP: Quando o fato descrito na denúncia não constitua a infração penal reconhecida na sentença, se não houver argüição de nulidade, em grau de apelação, a solução forçosa será absolver o réu.” (JTACRESP 48/258)

Nesta conformidade, diante dos argumentos acima expendidos, DÁ-SE PROVIMENTO ao recurso interposto, para absolver a ré Marilda Terezinha Macera Gomes pela infração ao art. 155, § 4.º, inciso II, do Código Penal, com base no art. 386, inc. IV, do CPP.” (fls. 195/199 – nossos os grifos).

Conheço apenas em parte do recurso ministerial.

É que não tendo recorrido da sentença que, julgando procedente denúncia oferecida contra a recorrida pela prática do delito tipificado no artigo 155, parágrafo 4.º, inciso II, do Código Penal, não pode pretender, em sede excepcional, condenação por roubo, ante o trânsito em julgado, nesse tanto, da condenação.

Quanto à violação do artigo 384 do Código de Processo Penal, a matéria está prequestionada, viabilizando-se a admissão do pleito especial.

E, assim admitido o recurso, lhe dou provimento.

Os fatos que determinaram a denúncia e a condenação da recorrida são, de forma induvidosa, penalmente relevantes, pois que a denunciada, mediante o uso de substância inebriante dada à vítima em um suco de laranja, conduziu-a “(…) a um táxi, onde subtraiu para si a importância de CR$ 70.000,00 (setenta mil cruzeiros reais), trezentos e vinte dólares, um talão de cheques do BRB, contra corrente n.º 053.110.361-7, um cartão SOLO e a carteira de identidade da vítima, bens de propriedade deste que se encontravam na bolsa da mesma” e que “(…) a vítima perdera os sentidos, somente recobrando-os cerca de três horas depois, ao ser acordada pelo motorista de táxi que exigia o pagamento da corrida, afirmando que a denunciada foi embora” (fls. 2/3).

O fato do Ministério Público haver beneficiado o agente do delito, imputando-lhe furto com fraude ao invés de roubo, tanto quanto o fez o juiz na sentença, não determina a incidência da norma do artigo 384 do Código de Processo Penal, pois que o recurso interposto foi apenas da parte ré, visando à absolvição, com base em negativa de autoria.

In casu, nada autoriza a invocação da mutatio libelli, pois que caso de emendatio libelli é, e, não, de mutatio, vedada a reformatio in pejus.

Cabia ao Tribunal decidir o pleito recursal dentro da classificação favorável com que a ré apelante foi contemplada, absolvendo-a do crime em que foi condenada se prova não houver de autoria do fato, que é induvidosamente criminoso.

Pelo exposto, conheço, em parte, do recurso, e lhe dou provimento, para que o Tribunal Estadual aprecie o recurso de apelação da ré.

É o voto.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura do Paraná.