O julgamento em questão abordou dois temas muito relevantes de uma só vez. Veja-se a ementa:
“HABEAS CORPUS. QUEBRA DE SIGILO FISCAL REALIZADA DIRETAMENTE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. REQUISIÇÃO DE CÓPIAS DE DECLARAÇÕES DE IMPOSTO DE RENDA SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. ILICITUDE DA PROVA. DESENTRANHAMENTO DOS AUTOS. CONCESSÃO DA ORDEM.
1. Considerando o artigo 129, inciso VI, da Constituição Federal, e o artigo 8º, incisos II, IV e § 2º, da Lei Complementar 75⁄1993, há quem sustente ser possível ao Ministério Público requerer, diretamente, sem prévia autorização judicial, a quebra de sigilo bancário ou fiscal.
2. No entanto, numa interpretação consentânea com o Estado Democrático de Direito, esta concepção não se mostra a mais acertada, uma vez que o Ministério Público é parte no processo penal, e embora seja entidade vocacionada à defesa da ordem jurídica, representando a sociedade como um todo, não atua de forma totalmente imparcial, ou seja, não possui a necessária isenção para decidir sobre a imprescindibilidade ou não da medida que excepciona os sigilos fiscal e bancário.
3. A mesma Lei Complementar 75⁄1993 – apontada por alguns como a fonte da legitimação para a requisição direta pelo Ministério Público de informações contidas na esfera de privacidade dos cidadãos – dispõe, na alínea ‘a’ do inciso XVIII do artigo 6º, competir ao órgão ministerial representar pela quebra do sigilo de dados.
4. O sigilo fiscal se insere no direito à privacidade protegido constitucionalmente nos incisos X e XII do artigo 5º da Carta Federal, cuja quebra configura restrição a uma liberdade pública, razão pela qual, para que se mostre legítima, se exige a demonstração ao Poder Judiciário da existência de fundados e excepcionais motivos que justifiquem a sua adoção.
5. É evidente a ilicitude da requisição feita diretamente pelo órgão ministerial à Secretaria de Receita Federal, por meio da qual foram encaminhadas cópias das declarações de rendimentos do paciente e dos demais investigados no feito.
6. Conquanto sejam nulas as declarações de imposto de renda anexadas à medida cautelar de sequestro, não foi juntada ao presente mandamus a íntegra do mencionado procedimento, tampouco o inteiro teor da ação penal na qual a citada documentação teria sido utilizada, de modo que este Sodalício não pode verificar quais ‘provas e atos judiciais‘ estariam por ela contaminados, exame que deverá ser realizado pelo Juízo Federal responsável pelo feito.
7. Ordem concedida para determinar o desentranhamento das provas decorrentes da quebra do sigilo fiscal realizada pelo Ministério Público sem autorização judicial, cabendo ao magistrado de origem verificar quais outros elementos de convicção e decisões proferidas na ação penal em tela e na medida cautelar de sequestro estão contaminados pela ilicitude ora reconhecida.”
(STJ – HC 160646/SP – 5ª T. – Rel. Min. Jorge Mussi – DJe de 19.9.11. Destaques nossos)
Eis os fundamentos do voto do Min. relator:
“VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO JORGE MUSSI (Relator): Conforme relatado, com este habeas corpus pretende-se, em síntese, o reconhecimento da nulidade da prova decorrente de quebra de sigilo fiscal obtida diretamente pelo Ministério Público, sem prévia autorização judicial.
(…)
Para instruir a referida medida cautelar, o Ministério Público requisitou à Receita Federal cópias das declarações de imposto de renda dos investigados, referentes ao exercício financeiro de 2007, o que foi atendido, conforme ofício de fls. 76⁄77, juntando-se aos autos a documentação de fls. 78⁄141. Seguiram-se decisões judiciais deferindo o sequestro de diversos bens dos acusados (e-STJ, fls. 258⁄268 e 269⁄270).
Pois bem. De tudo quanto consta dos autos, tem-se que assiste razão aos impetrantes.
Como se sabe, é amplamente discutida na doutrina e na jurisprudência a submissão da quebra do sigilo fiscal à cláusula de reserva de jurisdição. (…)
No que se refere especificamente à requisição direta de informações protegidas por sigilo pelo Ministério Público, impõe-se o exame da legislação que estaria a respaldar tal proceder. O inciso VI do artigo 129 da Constituição Federal prevê como uma das funções institucionais do Parquet a requisição de informações e documentos para instruir procedimentos administrativos de sua competência, sendo que os incisos II e IV do artigo 8º da Lei Complementar 75⁄1993 estabelecem que para o exercício das suas atribuições, o órgão ministerial poderá ‘requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta‘ e requisitar ‘informações e documentos a entidades privadas‘.
Considerando os referidos preceitos normativos, há quem sustente ser possível ao Ministério Público requerer, diretamente, sem prévia autorização judicial, a quebra de sigilo bancário ou fiscal. Este entendimento seria reforçado pelo § 2º do citado artigo 8º da Lei Complementar 75⁄1993, que consigna que ‘nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido‘. No entanto, numa interpretação consentânea com o Estado Democrático de Direito, esta concepção não se mostra a mais acertada.
É que o Ministério Público é parte no processo penal, e embora seja entidade vocacionada à defesa da ordem jurídica, representando a sociedade como um todo, não atua de forma totalmente imparcial, ou seja, não possui a necessária isenção para decidir sobre a imprescindibilidade ou não da medida que excepciona os sigilos fiscal e bancário.
A propósito, eis as considerações lançadas por Juliana Garcia Belloque:
‘(…) Além disso, o perfil do Ministério Público, desenhado pela Constituição de 1988, no qual sobressai a defesa da ordem jurídica, não lhe retira a posição de parte processual, mormente nas causas penais e nas ações civis públicas. Não há como negar que ele constitui um dos sujeitos da relação processual, interessado perante a decisão jurisdicional final, ao qual são atribuídos ônus processuais. O fato de o membro do Ministério Público não deduzir pretensões próprias em juízo e apenas representar o poder-dever de punir do Estado – ao qual não incumbe a imposição de penas àqueles contra quem não se conseguiu reunir provas suficientes à condenação – não autoriza a afirmação de que à instituição não possa ser atribuído interesse no processo penal.‘ (Sigilo bancário. Análise crítica da LC 105⁄2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 138⁄141).
A mencionada autora conclui, frisando que ‘à componente interessado da relação processual não cabe a atribuição de poder gerador de desequilíbrio incompatível com devido processo legal’, o que inevitavelmente ocorreria, ‘caso tivesse o Ministério Público o poder de requisitar diretamente às instituiçõesfinanceiras as informações conservadas sob a tarja do sigilo‘ (Op. cit., p. 141).
Frise-se que a mesma Lei Complementar 75⁄1993 – apontada por alguns como a legitimar a requisição direta pelo Ministério Público de informações contidas na esfera de privacidade dos cidadãos – dispõe, na alínea ‘a’ do inciso XVIII do artigo 6º, competir ao órgão ministerial representar pela quebra do sigilo de dados, verbis: ‘Art. 6º Compete ao Ministério Público da União: (…) XVIII – representar; a) ao órgão judicial competente para quebra de sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, bem como manifestar-se sobre representação a ele dirigida para os mesmos fins;‘
Ademais, é imperioso registrar que o sigilo fiscal insere-se no direito à privacidade protegido constitucionalmente nos incisos X e XII do artigo 5º da Carta Federal: (…)
Desse modo, há que se ter presente que a quebra de sigilo configura restrição a uma liberdade pública, razão pela qual, para que se mostre legítima, se exige a demonstração ao Poder Judiciário da existência de fundados e excepcionais motivos que justifiquem a sua adoção, sob pena de violação indevida à privacidade garantida constitucionalmente a todos os cidadãos.
Esta é a compreensão que vem sendo defendida doutrinariamente: (…)
No mesmo sentido é a jurisprudência deste egrégio Superior Tribunal de Justiça, que em diversos precedentes não admite a quebra de sigilo fiscal diretamente pelo Ministério Público:
(…)
Em hipóteses nas quais se discutia a possibilidade de quebra de sigilo bancário diretamente pelo Parquet, o Supremo Tribunal Federal também se manifestou no sentido da indispensabilidade de prévia autorização judicial:
(…)
Desse modo, é evidente a ilicitude da requisição feita diretamente pelo órgão ministerial à Secretaria de Receita Federal, por meio da qual foram encaminhadas cópias das declarações de rendimentos do paciente e dos demais investigados no procedimento criminal em tela (e-STJ, fls. 76⁄77 e 78⁄141).
(…)
Ante o exposto, concede-se a ordem para determinar o desentranhamento das provas decorrentes da quebra do sigilo fiscal realizada pelo Ministério Público sem autorização judicial, cabendo ao magistrado de origem verificar quais outros elementos de convicção e decisões proferidas na ação penal em tela e na medida cautelar de sequestro estão contaminados pela ilicitude ora reconhecida.
É o voto.” (destacamos)
N o t a s
Valendo-se de interpretação extensiva de dispositivos constitucionais e legais, alguns estudiosos sustentam que o Ministério Público teria o poder de determinar, às Receitas Estadual e Federal, que tais órgãos forneçam informações fiscais e bancárias – às quais a Constituição atribui a qualidade de sigilosas – de qualquer cidadão brasileiro. Mas se trata de entendimento minoritário.
Dentre as várias premissas recomendadas para o estudo adequado dessa questão, sobressai-se a da natureza do Ministério Público: se ela for igual à do Juiz, poder-se-á admitir que tenha poderes semelhantes aos seus; caso contrário, não. É precisamente essa a análise que se fez com objetividade e clareza no voto acima transcrito.
O Min. Jorge Mussi considerou que “a quebra de sigilo configura restrição a uma liberdade pública, razão pela qual, para que se mostre legítima, se exige a demonstração ao Poder Judiciário da existência de fundados e excepcionais motivos” que a justifiquem. E, como “o Ministério Público é parte no processo penal“, ele “não atua de forma totalmente imparcial, ou seja, não possui a necessária isenção para decidir sobre a imprescindibilidade ou não da medida que excepciona os sigilos fiscal e bancário“. É dizer: a certeza com que se afirmaria que o advogado da defesa, no processo penal, não tem a prerrogativa de requisitar informações sigilosas de terceiros aos bancos ou à Receita é a mesma que deve existir quanto à impossibilidade de o Ministério Público fazê-lo. A decisão, assim, soluciona a questão com evidente coerência.