Habeas Corpus, art. 408 do Código de Processo Penal. Pronúncia. Eloqüência acusatória. Afirmativa de autoria. Pronunciamento sobre os aspectos subjetivos da conduta do acusado. Afastamento de possível tese defensiva. Peça que pode influir indevidamente no convencimento dos jurados. Princípio da soberania dos veredictos do júri. Ofensa caracterizada. Ordem concedida.

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HABEAS CORPUS N.º 93.299-1-MG
Rel.: Min. Ricardo Lewandowski
Ementa

I – Fere o princípio da soberania dos veredictos a afirmação peremptória do magistrado, na sentença de pronúncia, que se diz convencido da autoria do delito.
II – A decisão de pronúncia deve guardar correlação, moderação e comedimento com a fase de mera admissibilidade e encaminhamento da ação penal ao Tribunal do Júri.
III – Ordem concedida.
(STF/DJU de 24/10/2008)

O Supremo Tribunal Federal proferiu julgamento decidindo, através de sua 1.ª Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski que não é admissível manifestação sob os aspectos subjetivos da conduta do acusado e também sob o afastamento de possível tese defensiva que pode influir indevidamente no convencimento dos jurados. Ocorre, no caso, ofensa ao princípio da soberania dos veredictos do Júri causando nulidade da pronúncia.

Consta do voto do Relator:
O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSRI (Relator): Bem examinados os autos, tenho que a medida liminar é de ser confirmada.
Transcrevo abaixo trecho da decisão de pronúncia, colhido da decisão do Superior Tribunal de Justiça (fls. 63-64, gritos nossos):

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“1 – Os fatos da denúncia restaram comprovados de forma bastante. As lesões suportadas pelo ofendido Darci Luiz estão referidas nos autos de corpo delito de fls. 15. Sofreu a vítima quatro lesões perfuro-cortantes na região escapular.
A prova pericial médica e a prova testemunhal dão conta do nexo de causalidade havido entre a agressão à vítima Darei Luiz e as lesões nela produzidas.

2 – A autoria, no caso presente, está comprovada. O mesmo agente, quando interrogado, fls. 53/54, reconheceu haver desferido facadas na vítima. São suas palavras: “…o acusado ficou meio zonzo e só viu na hora que estava com a faca na mão e nem se lembra mais do que aconteceu. Não sabe quantas facadas deu na vítima, mas segundo lhe disseram, foram quatro…”

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3- Respeitante à definição jurídica dos fatos da denúncia, verifico praticou o agente o crime de homicídio tentado, sendo vítima Darci Luiz da Silva. Capitula-se o fato delituoso atribuído ao réu pelo tipo do artigo 121, caput, c/c artigo 14, III, ambos do Código Penal. A intenção de matar resultou demonstrada, seja pela maneira de atuar do réu, seja pela mesma natureza e sede das lesões. Pela prova apurada, vê-se muito bem evidenciado o animus necandi no atuar do acusado. Vale, aqui, destacar palavras da vítima:

“… Na sexta o declarante estava trabalhando quando chegou o réu e lhe falou que homem nenhum falava aquilo para a mulher dele e tinha sido a última vez que o declarante tinha tratado a mulher do réu naquela forma. Ele estava com uma sacola de plástico na cintura e a arrancou e partiu para cima do declarante. O declarante, para se defender, apanhou um taco e deu duas tacadas no réu. O declarante, no entanto, escorregou e caiu e aí o réu aproveitou-se e lhe aplicou quatro facadas nas costas… O acusado lhe falou que ia encher a cara do declarante de bala porque nunca ninguém tinha conversado daquele jeito com sua mulher…” – fls. 64/65.

4 – Estou convencido da materialidade e da autoria do delito aqui tratado, cometido contra a vítima. Não encontro motivos bastantes para absolver o réu sumariamente, já que não estou convencido da existência de excludente de crime ou de causa de isenção de pena. Muito ao contrário daquilo que expôs o sábio Dr. Defensor, não vejo, in casu bem provada a situação de defesa legítima pretendida pelo réu. A absolvição sumária seria, no caso presente, por todo descabida e em plena afronta ao bom senso. Melhor será vá o presente caso ao conhecimento do Tribunal do Povo para a apreciação de tais circunstância.

5 – HIS POSITIS e pelo mais que está nos autos, reconhecidas a materialidade e autoria e afastada a hipótese de desclassificação e de absolvição sumária, PRONUNCIO Onilson Antônio de Araújo como incurso nas penas do artigo 121, Caput, c/c artigo 14, II, do Código Penal e ORDENO seja levado a julgamento pelo Tribunal do Júri (fls. 36/38)H.
Consoante afirmei, quando da análise da medida liminar, para submeter qualquer acusado ao Tribunal Popular, o juízo positivo de admissibilidade não pode apontar, de forma peremptória, a autoria do delito sob pena de imiscuir-se na competência constitucionalmente atribuída ao Conselho de Sentença e, assim, ferir o princípio da soberania dos veredictos.

Como se pode observar na decisão de pronúncia acima transcrita, o digno magistrado de primeiro grau não só indigitou o paciente como autor do delito, como também teceu considerações sobre o aspecto subjetivo de sua conduta, além de afastar, desde logo, a tese de legítima defesa. Ora, tais considerações podem gerar influência indevida sobre os jurados, pessoas comuns do povo, para as quais o juiz é a pessoa mais imparcial do Tribunal, devendo suas afirmações ser levadas em alta consideração, em detrimento do acusado.

Nesse sentido, a doutrina de Ada Pelegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho: (1)
“Também não deve a pronúncia conter a exteriorização do convencimento do magistrado acerca do mérito da causa, pois isso certamente irá influenciar o ânimo dos jurados; assim, se, de um lado, está o juiz obrigado a fundamentar, por outro lado, prescreve a doutrina moderação nos termos empregados, sendo aconselhável consignar na decisão, sempre que houver controvérsias a respeito de pontos fundamentais, que a solução foi inspirada no desejo de deixar ao Júri o veredicto final”.

Também leciona Antônio Hermínio Marques Porto: (2)

A motivação, na pronúncia, não oferece encaminhamento a uma parte final e dispositiva, mas a uma parte final de natureza classificatória e provisória; na sentença do Juiz Presidente do Tribunal do Júri é que estará integralizada a relação entre a motivação (ofertada imediatamente pelos jurados, ou mediatamente em caso de desclassificação) e a parte dispositiva que aplicará, se condenatória, a pena, aplicando “O direito positivo ao ato concreto”; assim, a motivação, que representa a necessária exteriorização do raciocínio do Juiz, não comporta, em se tratando de decisão de pronúncia, uma integral relação entre os motivos de fato (amplamente considerados, e, assim, atingindo nem só os elementos de natureza material, como também o exame da vontade do agente) e os motivos de direito.
(…)

Na fundamentação, a valoração das provas, envolvendo indícios de autoria relacionados com a culpabilidade, é expressada nos limites de uma verificação não aprofundada, mas eficiente à formalização de um esquema classificador. Nem só ao rebater os argumentos das partes, como ao oferecer o seu convencimento, o Juiz na pronúncia, para não ultrapassar o permissivo à decisão interlocutória de encaminhamento da imputação, e para não influir, indevidamente, no espírito dos jurados, deve ter o comedimento das expressões, para que não sejam ultrapassados os limites da decisão marcantemente de efeitos processuais”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não caminha em sentido diverso. Veja-se, dentre outros, os seguintes
precedentes:

“Pronúncia: nulidade por excesso de “eloqüência acusatória’.

1. É inadmissível, conforme a jurisprudência consolidada do STF, a pronúncia cuja fundamentação extrapola a demonstração da concorrência dos seus pressupostos legais (CPrPen, art. 408) e assume, com afirmações apodíticas e minudência no cotejo analítico da prova, a versão acusatória ou rejeita peremptoriamente a da defesa (v.g., HC 68.606, 18/6/91, Celso, RTJ 136/1215; HC 69.133, 24/3/92, Celso, RTJ 140/917; HC 73.126, 27/2/96, Sanches, DJ 17/5/96; RHC 77.044, 26/5/98, Pertence, DJ 7/8/98).

2. O que reclama prova, no juízo da pronúncia, é a existência do crime; não, a autoria, para a qual basta a concorrência de indícios, que, portanto, o juiz deve cingir-se a indicar.

3. No caso, as expressões utilizadas pelo órgão prolator do acórdão confirmatório da sentença de pronúncia, no que concerne à autoria dos delitos, não se revelam compatíveis com a dupla exigência de sobriedade e de comedimento a que os magistrados e Tribunais, sob pena de ilegítima influência sobre o ânimo dos jurados, devem submeter-se quando praticam o ato culminante do judicium accusationis (RT 522/361)”. (HC 85.260/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. JÚRI. PRONÙNCIA. ACÓRDÂO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA QUE SE EXCEDE EM SUA LINGUAGEM. NULIDADE. OCORRÊNCIA. RECURSO PROVIDO.

1. A decisão de pronúncia, por encerrar mero juízo de admissibilidade da ação penal no procedimento especial do Júri, não pode tecer maiores considerações sobre o mérito da causa.

2. O acórdão do Tribunal de Justiça que, ao confirmar a pronúncia, se excede em sua linguagem pode causar prejuízo ao réu, por influenciar o Conselho de Sentença.

3. Nulidade reconhecida.

4. Recurso ordinário provido, para que outro acórdão seja prolatado” (RHC 83.986/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa).
“HABEAS CORPUS – JÚRI – PRONÚNCIA – LIMITES A QUE JUIZES E TRIBUNAIS ESTÃO SUJEITOS – EXCESSO CONFIGURADO – ORDEM DEFERIDA.
– Os Juizes e Tribunais devem submeter-se, quando praticam o ato culminante do “judicium accusationis” (pronúncia), a dupla exigência de sobriedade e de comedimento no uso da linguagem, sob pena de ilegítima influência sobre o animo e a vontade dos membros integrantes do Conselho de Sentença.
– Age “ultra vires”, e excede os limites de sua competência legal, o órgão judiciário que, descaracterizando a natureza da sentença de pronuncia, converte-a, de um mero juízo fundado de suspeita, em um inadmissível juízo de certeza (RT 523/486)”, (HC 6r.133/MG, Rel. Min. Celso de Mello).
Isso posto, pelo meu voto, concedo a ordem.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Carlos Britto, Carmen Lúcia e Menezes Direito.

Notas

(1) GRINOVER, Ada Pelegrini, FERNANDES, Antônio Scarance, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 263.
(2) PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri: procedimentos e aspectos do julgamento: questionários. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 74-75.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.