Processual penal. Procedimento do J

Processual penal. Procedimento do Júri. Juntada de documentos para leitura requerida três dias antes da data em que a sessão se realizaria. Indeferimento. Art. 475 do CPP. Inteligência. Cerceamento à ampla defesa e ao contraditório. Nulidade absoluta.

HABEAS CORPUS N.º 92.958-3-SP

Rel.: Min. Joaquim Barbosa

EMENTA

1. O pedido da defesa para juntada de documentos, cuja leitura pretendia realizar em plenário, não poderia ter sido indeferido, pois foi protocolizado exatos três dias antes da data do julgamento. Artigo 475 do Código de Processo Penal. Impossibilidade de interpretação extensiva para prejudicar o réu.

2. O prejuízo causado pelo indeferimento ofende o próprio interesse público, pois conduziu à prolação de um veredicto sem que todas as provas existentes fossem submetidas ao conhecimento dos jurados. Garantias do contraditório e da ampla defesa violadas.

3. Tratando-se de nulidade absoluta, não há de se falar em preclusão pelo mero fato de a irregularidade não ter sido argüida logo após o pregão, como determina o art. 571 do Código de Processo Penal.

4. Ordem concedida, para que novo julgamento seja realizado pelo Tribunal Popular, garantida a leitura dos documentos cuja juntada foi indeferida pelo ato impugnado. Impossibilidade de reformatio inpejus.

(STF/DJU de 2/5/2008)

Decidiu o Supremo Tribunal Federal, por sua SEGUNDA TURMA, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, que o requerimento para a juntada de documentos três dias antes da sessão obedece o mandamento legal e não pode ser indeferido, pois o indeferimento, em tais condições, importa em cerceamento de defesa e viola o contraditório.

Consta do voto do Relator:

O senhor Ministro Joaquim Barbosa – (Relator): Sr. Presidente, conforme relatei, os impetrantes alegam que o juízo presidente da Vara do Júri da Comarca de Sumaré/SP teria incorrido em violação ao contraditório e à ampla defesa do paciente, nos autos do processo criminal n.º 39/00, em que o paciente foi condenado pela autoria intelectual do crime de homicídio praticado contra Hedy Mazer, tendo por co-autores Ângela e Heliodoro, este último apontado como o executor do crime.

Para os impetrantes, o indeferimento da juntada de documentos pelo juízo configurou constrangimento ilegal, tendo em vista que o pedido foi formulado três dias antes da sessão de julgamento, tal como disposto no art. 475 do Código de Processo Penal.

Tais documentos, cuja leitura em plenário era pretendida pela defesa, guardavam relação com o processo criminal de que derivou a ação penal de origem, e no qual se apurou a possível participação do paciente e de sua co-ré Ângela no assassinato de Heliodoro, executor do crime contra Hedy pelo qual o paciente foi condenado.

A defesa pretendia realizar a leitura da sentença de impronúncia do paciente naqueles autos e da absolvição de sua co-ré, Ânqela, pelo Tribunal Popular, em relação àquele fato (morte de Heliodoro).

Os impetrantes consideram que, por ser hipótese de nulidade absoluta, não se operaria a preclusão, razão pela qual sua argüição pode ser feita a qualquer tempo.

Alegam, ainda, que o protesto em plenário ou por ocasião do pregão de nada valeria para a defesa, pois ainda assim a pretendida leitura dos documentos durante a sessão de julgamento não seria possível, tendo em vista o prazo estabelecido no art. 475 do Código de Processo Penal.

Segundo consta dos autos, o pedido de juntada de novos documentos foi deduzido no dia 15 de abril de 2002, sendo que a sessão de julgamento perante o Tribunal do Júri estava designada para o dia 18 de abril subseqüente.
O juízo atuante no primeiro grau de jurisdição indeferiu o pleito, considerando que o supra mencionado art. 475 do Código de Processo Penal determina que “os documentos devem ser juntados até 3 dias antes do julgamento”, o que não teria sido cumprido.

O Superior Tribunal de Justiça assim decidiu o writ impetrado:

“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. JÚRI. CERCEAMENTO DE DEFESA. INDEFERIMENTO DE JUNTADA DE DOCUMENTOS AOS AUTOS PARA LEITURA EM PLENÁRIO. FALTA DE QUESTIONAMENTO NO MOMENTO OPORTUNO. PRECLUSÃO. AUSÊNCIA DE JUNTADA DO DOCUMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE AFERIÇÃO DO PREJUÍZO EVENTUALMENTE SOFRIDO. ORDEM DENEGADA.

1. O prazo de três dia, mencionado no artigo 475 do Código de Processo Penal, refere-se à ciência da parte adversa sobre documento a ser lido em plenário do Júri, não mencionando quando deve ocorrer a sua juntada, dai ser imprescindível que se faça em prazo razoável para permitir o conhecimento dos interessados.

2. A alegação de nulidade decorrente do indeferimento do pedido de juntada aos autos de documentos para leitura em plenário está preclusa, pois, nos termos do inciso V, do art. 571, do Código de Processo Penal, as nulidades posteriores à pronúncia devem ser argüidas tão-só seja anunciado o julgamento e apregoadas as partes.

3. Se o impetrante não juntou aos autos cópias das peças a serem lidas em plenário, não se pode analisar o prejuízo que a ausência de sua leitura causou à defesa do paciente e, sem prejuízo, não há reconhecimento da alegada nulidade.

4. Ordem denegada.”
Relativamente ao que se contém no número 1 da ementa acima, senhor Presidente, eu considero ter havido uma interpretação extensiva do texto do art. 475 do Código de Processo Penal, que acabou por prejudicar o paciente. Referido dispositivo legal estabelece o seguinte:

Art. 475. Durante o julgamento não será permitida a produção ou leitura de documento que não tiver sido comunicado à parte contrária, com antecedência, pelo menos, de 3 (três) dias, compreendida nessa proibição a leitura de jornais ou qualquer escrito, cujo conteúdo versar sobre matéria de fato constante do processo.

Como se nota às fls. 241 destes autos, a defesa apresentou os documentos exatos três dias antes da data designada para o julgamento, sendo evidente, portanto, que bastava dar ciência, naquele mesmo dia, à acusação e sua assistência, de que a defesa realizaria sua leitura, ainda que tal despacho nos autos, ou que se determinasse que os advogados do réu providenciassem a referida comunicação.

É como leciona, com clareza, GUILHERME DE SOUZA NUCCI, em comentários ao referido art. 475 do Código de Processo Penal (Código de Processo Penal Comentado. 58 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 790):
“2. Prazo de três dias: computa-se o dia do julgamento. Assim, se este estiver designado para o dia 20, pode o documento ser apresentado, para ciência, à parte contrária, até o dia 17. Logo, não são três dias inteiros (17, 18 e 19, devendo ser apresentado até o dia 16), mas sim a contagem normal de processo penal, partindo-se do dia do julgamento para trás, não se incluindo o primeiro dia, mas incluindo-se o último. (…) Checar: TJPA: “(…) na contagem do tríduo previsto no art. 475 do Código de Processo Penal, desde que a efetivação da ciência dos documentos à parte contrária dependa de procedência cartorária, o dia do começo será aquele em que despachada ou protocolada a petição instruída com as peças cuja leitura se pretendia em plenário (…).

descabe a alegação de cerceamento do direito de defesa por falta de tempo para analisar a documentação, eis que a norma em tela exige apenas a ciência da parte interessada, sem lhe assinar prazo para a realização de qualquer providência. A intenção do legislador se limitou a evitar que a parte fosse surpreendida, já em plenário, pela presença do material por si desconhecido’ (Ap. 2004301186-1, 1.ª C., rel. João José da Silva Maroja, 28/4/2005, v.u., RT 837/419).”

Assim, o indeferimento foi, efetivamente, ilegal.
Esclarecido este ponto, duas questões devem ser resolvidas:

1) o ato impugnado causou prejuízo para a defesa (cf. arts. 563(1) e 5662(2) do Código de Processo Penal)?

2) para conhecimento desta argüição de nulidade, deveria a defesa tê-la alegado no momento em que foram apregoadas as partes para a sessão de julgamento, como manda o art. 571, V(3), do Código de Processo Penal?

Relativamente à questão do prejuízo do ato impugnado para a defesa, destacou o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, aqui impugnado, que “Se o impetrante não juntou aos autos cópias das peças a serem lidas em plenário, não se pode analisar o prejuízo que a ausência de sua leitura causou à defesa do paciente e, sem prejuízo, não há reconhecimento da alegada nulidade”.

Assim, considerou-se impossível analisar o que o ato teria causado.

Discorrendo sobre o tema, ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES e ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO destacam que nem sempre é possível cobrar das partes a prova cabal deste dano, razão pela qual sua demonstração deve ser feita através de simples procedimento lógico (As Nulidades no Processo Penal. 8.ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 33):

“A decretação da nulidade implica perda da atividade processual já realizada, transtornos ao juiz e às partes e demora na prestação jurisdicional almejada, não sendo razoável, dessa forma, que a simples possibilidade de prejuízo dê lugar à aplicação da sanção; o dano deve ser concreto e efetivamente demonstrado em cada situação.

Isso não significa que em todos os casos se exija a produção de prova da ocorrência de prejuízo; normalmente essa demonstração se faz através de simples procedimento lógico, verificando-se se a perda da faculdade processual conferida à parte ou o comprometimento dos elementos colocados à disposição do juiz no momento da sentença tiveram influência no resultado final do processo.
As nulidades absolutas não exigem demonstração do prejuízo, porque nelas o mesmo é evidente. (…)

Pense-se, por exemplo, na falta de citação (art. 564, III, e, primeira parte, do CPP); se o réu não é chamado ao processo, não comparece, não apresenta defesa, não produz provas, etc., claro está o prejuízo ao contraditório, sendo ociosa qualquer tentativa de demonstração; o mesmo se diga com relação à deficiência na formulação de quesitos no procedimento do Júri (art. 564, parágrafo único, primeira parte, do CPP); se uma questão não é submetida à apreciação dos jurados. Manifesto é o prejuízo para o julgamento.

Já com relação às nulidades relativas, o mesmo não ocorre; (…) nas chamadas nulidades relativas, o prejuízo não é constatado desde logo, em razão do que se exige alegação e demonstração do dano pelo interessado no reconhecimento do vício”.

Assim, o que precisamos perquirir é se, no caso em questão, o prejuízo pode ser considerado flagrante, evidente, ou não, caso em que sua declaração somente seria possível se tempestivamente argüida pela parte interessada (ou seja, logo após o pregão, nos termos do art. 571, V, do Código de Processo Penal), tal como destacado no acórdão do Superior Tribunal de Justiça aqui impugnado.

Como se pode perceber, o que aconteceu na ação penal de origem não foi uma mera inobservância da forma de um ato processual. O ato impugnado não foi praticado em error in procedendo, mas sim em error in judicando. Impediu-se a juntada de documentos para leitura em plenário, com base em uma intempestividade que não ocorreu. Assim, em alguma medida, é inegável que houve o alegado cerceamento à defesa do paciente, principalmente no que tange á sua participação na formação da prova (princípio do contraditório).
A meu ver, a impossibilidade de realização ampla do contraditório e do direito de defesa do paciente, com todos os meios a ela inerentes, é causa inconteste de nulidade absoluta. Como destacam ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES e ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO (Opus cit., p. 94), “a infringência à norma constitucional com conteúdo de garantia acarreta, como sanção, a nulidade absoluta”.

Assim, não importa o efeito que a leitura dos referidos documentos causaria nos jurados durante aquela sessão de julgamento. A defesa tinha, independentemente da relevância do seu conteúdo, o direito de ler aqueles documentos em plenário e, assim, tentar influenciar na decisão final dos jurados. Ainda nas lições de PELLEGRINI, SCARANCE e GOMES FILHO (fls. 141 e ss.):
“As dúvidas sobre a veracidade das afirmações feitas pelas partes no processo constituem questões de fato que devem ser resolvidas pelo juiz, à vista da prova de acontecimentos pretéritos relevantes. A prova constitui, assim, numa primeira aproximação, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência de certos fatos.
(…)
A garantia do contraditório não tem apenas como objetivo a defesa entendida em sentido negativo – como oposição ou resistência -, mas sim principalmente a defesa em sua dimensão positiva, como influência, ou seja, como direito dee incidir ativamente sobre o desenvolvimento e o resultado do processo. É essa visão que coloca ação, defesa e contraditório como direitos a que sejam desenvolvidas todas as atividades necessárias à tutela dos próprios interesses ao longo de todo o processo, manifestando-se em uma séria de posições de vantagem que se titularizam quer no autor, quer no réu.
(…)
Salienta-se, assim, o direito à prova como aspecto de particular importância no quadro do contraditório, uma vez que a atividade probatória representa o momento central do processo; estritamente ligada à alegação e à indicação dos fatos, visa ela a possibilitar a demonstração da verdade, revestindo-se de particular relevância para o conteúdo do provimento jurisdicional. O concreto exercício da ação e da defesa fica essencialmente subordinado à efetiva possibilidade de representar ao juiz a realidade do fato posto como fundamento das pretensões das partes, ou seja, de estas poderem servir-se das provas.” Portanto, ofende o interesse público uma decisão que foi prolatada sem que todas as provas existentes fossem submetidas ao conhecimento do órgão julgador.

Estas razões me conduzem a dissentir do parecer da Procuradoria-Geral da República, no ponto em que sustenta que, na documentação cuja juntada foi indeferida, “a dizer de outro processo, a tramitar em outra comarca (…) efetivamente não estabelece ponto de importância ao feito presente”.

Ora, com todas as vênias, não cabe a qualquer órgão, senão ao próprio Tribunal Popular, realizar tal juízo de valor sobre as provas em comento. Não, portanto, desse “valor” que o presente habeas corpus deve cuidar, mas sim do direito ou não de a defesa apresentar todas as provas, licitas e tempestivamente colhidas, à apreciação do órgão julgador. E ai, não há a menor dúvida da existência e importância deste seu direito no Estado Democrático de Direito.

Como o caso é de nulidade absoluta, a irregularidade não foi convalidada pelo só fato de não ter sido argüida logo após o pregão da sessão de julgamento, corno determina o art. 571, V, do Código de Processo Penal, para as hipóteses de nulidades relativas.

Do exposto, eu concedo a ordem, para que novo julgamento seja realizado pelo Tribunal do Júri da Comarca de Sumaré, com a possibilidade de leitura dos documentos cuja juntada foi requerida através da petição por cópia às fls. 241/242. Fica desde logo vedada a reformatio in pejus da pena.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Eros Grau.

Notas

(1)     Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.

(2)     Art. 566. Não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa.

(3)     Art. 571. As nulidades deverão ser argüidas: V – as ocorridas posteriormente à pronúncia, logo depois de anunciado o julgamento e apregoadas as partes (art. 447);

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.