Processual penal. Prisão preventiva. Ausência de concreta fundamentação.

EMENTA

1. A prisão preventiva é medida excepcional e deve ser decretada apenas quando devidamente amparada pelos requisitos legais, em observância ao princípio constitucional da presunção de inocência ou da não culpabilidade, sob pena de antecipar a reprimenda a ser cumprida quando da condenação.

2. Cabe ao Julgador, ao avaliar a necessidade de decretação da custódia cautelar, interpretar restritivamente os pressupostos do art. 312 do Código de Processo Penal, fazendo-se mister a configuração empírica dos referidos requisitos.

3. O juízo valorativo sobre a gravidade genérica dos delitos imputados ao paciente, bem como a credibilidade do Poder Judiciário e o clamor público e comoção social não constituem fundamentação idônea a autorizar a prisão para garantia da ordem pública, se desvinculados de qualquer fator concreto.

4. Aspectos que devem permanecer alheios à avaliação dos pressupostos da prisão preventiva.

5. As afirmações a respeito da gravidade do delito trazem aspectos já subsumidos no próprio tipo penal.

6. Precedentes do STF e do STJ.

7. Deve ser cassado o acórdão recorrido, bem como o decreto prisional, para revogar a prisão preventiva do paciente, determinando-se a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta.

8. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator.

(STJ/DJU de 03/10/05, pág. 307)

Decidiu a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Gilson Dipp, que os requisitos do art. 312 devem ser interpretados restritivamente, não cabendo ser invocada a credibilidade do Poder Judiciário, o clamor público e a comoção social para embasar a custódia cautelar do infrator.

Eis, na íntegra, o voto condutor:

Exmo. Sr. Ministro Gilson Dipp (Relator):

Trata-se de habeas corpus, substitutivo de recurso ordinário, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, que denegou ordem anteriormente impetrada em favor de JOSÉ ADELMO DA SILVA, visando à revogação da prisão preventiva contra ele decretada.

O paciente foi denunciado pela suposta prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada.

Inconformada com a decretação da prisão preventiva do réu, a defesa impetrou habeas corpus perante o Tribunal a quo.

A ordem, contudo, foi denegada, nos termos da ementa de fl. 108.

Daí a presente impetração, por meio da qual se reitera o pleito originário, sustentando-se ausentes os requisitos da medida constritiva.

Aduz-se, ainda, ser o paciente possuidor de condições pessoais favoráveis, tendo procurado a Autoridade Policial para prestar esclarecimentos sobre o ocorrido.

Merece prosperar a irresignação.

Eis o teor do decreto prisional:

?A sensibilidade deste Juiz oficiante, in loco, indica ser necessária a medida excepcional, sobretudo por questões de Ordem Pública, consubstanciado dentre da mais real legalidade formalizada no Código de Processo Penal.

(…)

Assim o julgador deve estabelecer o pressuposto de estabelecer precedência do interesse geral, público ou social sobre o individual.

A nossa Região vem sendo palco de crimes dessa natureza. Daí porque a Justiça não pode e nem deve ficar alheia a tal quadro, entendendo pela imprescindibilidade de medias austeras, mormente sentido de arrefecer a prática de tais delitos, sendo necessário que não seja permitido que esse indiciado venha a cometer outros crimes.

Daí porque, no presente caso, a sensibilidade deste Juiz está a indicar ser necessária a aplicação de providências excepcionalíssimas contra o indiciado, sobretudo no sentido (de) resguardar a aplicação da Lei.

De modo que, considerando o parecer do representante do Ministério Público, decreto, com fulcro nos arts. 311 e 312 do CPP, a custódia preventiva do indiciado: JOSÉ ADELMO DA SILVA, vulgo ?DEBA?.? (fls. 33/34).

O voto condutor do acórdão impugnado, por sua vez, manteve a segregação do paciente nos seguintes termos:

?(…)

Cuido que, em face das informações prestadas pelo Juízo impetrado não aproveita ao paciente o fundamento de inexistência de motivos que autorizem a providência prisional preventiva. Ao contrário estão presentes os elementos ensejadores da medida segregatória excepcional, tais como, prova do crime e indícios da autoria. Ademais, o delito, pela forma de sua execução, causou revolta social. Logo para preservar a ordem pública e para garantir a aplicação da lei penal o paciente deve ser mantido preso.

O abalo na ordem pública na credibilidade da Justiça são inegáveis, diante da repercussão social do delito, mormente em se tratando de pequena cidade do interior, sendo de meridiana clareza o entendimento de que o responsável pela prática do crime descrito na peça informativa deve sujeitar-se a uma resposta rápida e enérgica dos órgãos responsáveis pela repressão e prevenção da criminalidade, os quais não podem, diante de uma situação como a dos autos tentativa contra a vida quedarem-se inertes ou deixarem de utilizar as medidas acautelatórias pertinentes.

(…).? (fl. 105).

Todavia, não se verifica fundamentação concreta a embasar a custódia do paciente, conforme se demonstrará a seguir.

Como é cediço, a prisão preventiva é medida excepcional e deve ser decretada apenas quando devidamente amparada pelos requisitos legais, em observância ao princípio constitucional da presunção de inocência ou da não culpabilidade, sob pena de antecipar a reprimenda a ser cumprida quando da condenação.

Sendo assim, cabe ao Julgador interpretar restritivamente os pressupostos do art. 312 da Lei Processual Adjetiva, fazendo-se mister a configuração empírica dos referidos requisitos.

Nesse contexto, destaca-se, no caso dos autos, três aspectos citados pelo decreto prisional e confirmados pelo acórdão recorrido que, contudo, não se prestam para embasar a custódia cautelar do paciente. São eles: a gravidade dos delitos imputados ao paciente, a credibilidade do Poder Judiciário e a ocorrência de comoção social e clamor público.

Tais fundamentos, afastados de quaisquer circunstâncias concretas, como se vislumbra in casu, não são o bastante para, isoladamente, justificar a prisão para garantia da ordem pública, pois a própria prática criminosa, por si só, é suficiente para intranqüilizar a sociedade.

Os referidos aspectos devem permanecer alheios à avaliação dos pressupostos da prisão preventiva, cabendo salientar que as afirmações a respeito da gravidade do delito trazem aspectos já subsumidos no próprio tipo penal.

A corroborar o entendimento acima explicitado, trago à colação farta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e deste Superior Tribunal de Justiça:

?1. Prisão por pronúncia de réu já anteriormente preso: pressuposto de validade da prisão cautelar anterior. É sedimentada a jurisprudência no sentido de que, se a pronúncia, para conservar preso o réu, cinge-se à remissão aos fundamentos do decreto de prisão preventiva anterior, a eventual inidoneidade destes contamina de nulidade a prisão processual; a fortiori, a orientação é de seguir-se quando a pronúncia silencia totalmente a respeito, como ocorreu no caso.

2. Prisão preventiva: motivação inidônea. Ausente fundamento cautelar no decreto de prisão devem ser desprezadas, porque a ele aditado pelas sucessivas instâncias, a alegada situação peculiar do paciente – descrita posteriormente na denúncia – e, especialmente, as invocações relativas à gravidade do delito, ao clamor público e à garantia da credibilidade da Justiça que, de resto, têm sido repudiadas pela jurisprudência do STF como motivos idôneos da prisão preventiva.?

(HC 83782/PI, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 25-02-2005)

 

?HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO E PRIVILEGIADO. CONDENAÇÃO. ANULAÇÃO DO JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI EM SEDE DE APELAÇÃO. MANUTENÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR FUNDADA NO CLAMOR SOCIAL E NA CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES. EXCESSO DE PRAZO.

1. O clamor social e a credibilidade das instituições, por si sós, não autorizam a conclusão de que a garantia da ordem pública está ameaçada, a ponto de legitimar a manutenção da prisão cautelar do paciente enquanto aguarda novo julgamento pelo Tribunal do Júri.

2. A prisão processual, pela excepcionalidade que a caracteriza, pressupõe inequívoca demonstração da base empírica que justifique a sua necessidade, não bastando apenas aludir-se a qualquer das previsões do art. 312 do Código de Processo Penal.

3. Hipótese, ademais, em que se configura o constrangimento ilegal pelo excesso de prazo da instrução criminal, que não pode ser atribuído à defesa.

Ordem concedida.?

(HC 84662/BA, Rel. Min. EROS GRAU, DJ de 22-10-2004)

?Habeas corpus.

2. Decreto de prisão preventiva. Fundamentação. A base empírica que justificou a decretação da prisão preventiva não se sustenta.

3. Policial militar. A circunstância de o paciente ser policial militar não é suficiente para embasar a prisão cautelar. Precedente.

4. O clamor público e a credibilidade das instituições, por si sós, não autorizam a custódia.

5. Habeas corpus deferido

(HC 82832/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ de 05-09-2003)

?CRIMINAL. HC. HOMICÍDIO QUALIFICADO. FURTO. PRISÃO PREVENTIVA. PRONÚNCIA. CUSTÓDIA MANTIDA. AUSÊNCIA DE CONCRETA FUNDAMENTAÇÃO. MOTIVAÇÃO FULCRADA EM CONJECTURAS E PROBABILIDADES. CIRCUNSTÂNCIAS REFERIDAS QUE JÁ ESTÃO SUBSUMIDAS NO TIPO. NECESSIDADE DA CUSTÓDIA NÃO DEMONSTRADA. PRESENÇA DE CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. ORDEM CONCEDIDA.

I.Exige-se concreta motivação para a decretação da prisão preventiva, com base em fatos que efetivamente justifiquem a excepcionalidade da medida, atendendo-se aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante.

II. Juízos de mera probabilidade não podem servir de motivação à custódia.

III. A possibilidade de abalo à ordem pública não pode ser sustentada por circunstâncias que estão subsumidas na gravidade do próprio tipo penal.

IV. Condições pessoais favoráveis, mesmo não sendo garantidoras de eventual direito à liberdade provisória, devem ser devidamente valoradas, quando não demonstrada a presença de requisitos que justifiquem a medida constritiva excepcional.

V. Deve ser revogada a prisão preventiva do paciente, determinando-se a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso, mediante condições a serem estabelecidas pelo Julgador de 1º grau, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta.

VI. Ordem concedida.?

(HC 40178/RJ, de minha Relatoria, DJ de 14.03.2005)

?PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO TENTADO POR DUAS VEZES. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COM BASE NA GRAVIDADE DO DELITO. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS E FUNDAMENTOS LEGAIS QUE AUTORIZAM A PRISÃO PREVENTIVA. NECESSIDADE CONCRETA DA MEDIDA RESTRITIVA DE LIBERDADE NÃO DEMONSTRADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM CONCEDIDA.

1. O decreto prisional cautelar exarado em desfavor dos pacientes, bem como o acórdão que manteve referida decisão, não demonstram de forma consistente a presença dos pressupostos e fundamentos que autorizam a custódia preventiva (CPP, art. 312), limitando-se a fazer referência à gravidade do delito imputado na denúncia contra eles ofertada, circunstância que não se mostra suficiente, por si só, para a decretação da referida medida restritiva de liberdade antecipada, que deve reger-se sempre pela demonstração da efetiva necessidade no caso em concreto.

2. A simples reprodução das expressões ou dos termos legais expostos na norma de regência, divorciada dos fatos concretos ou baseada em meras suposições ou pressentimentos, não é suficiente para atrair a incidência do art. 312 do Código de Processo Penal, tendo em vista que o referido dispositivo legal não admite conjecturas.

3. Considerando que a denúncia não foi precedida de inquérito policial, mas apenas de procedimento administrativo instaurado no âmbito do Ministério Público Estadual, e que nem mesmo a expedição da precatória destinada à citação dos acusados para responder à respectiva ação penal iniciada no mesmo instante em que decretada a preventiva foi efetivada, é prematuro decretar a custódia cautelar fundada na conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal, quando ausentes quaisquer fatos concretos que justifiquem tal medida preventiva, como fuga ou escusa no atendimento a chamado policial ou judicial.

4. Não se pode acolher sob o manto da ordem pública, que tem sentido muito amplo por estar voltada para a preservação de bens jurídicos essenciais à convivência social, eventual sentimento de vingança ou revolta por interesses ilegítimos contrariados.

5. Ordem concedida para revogar o decreto de prisão preventiva, ressalvada a possibilidade de decretação de nova custódia cautelar por motivo superveniente, caso fique demonstrada concretamente a necessidade da referida medida.?

(HC 38397/MG, Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, DJ de 21.03.2005)

Sobressai, portanto, a impropriedade da decretação da prisão preventiva do paciente, bem como do acórdão confirmatório da segregação, pois a custódia deve ser fundada em fatos concretos indicadores da sua real necessidade, atendendo aos termos do art. 312 do Código de Processo Penal e da jurisprudência dominante.

Dessarte, deve ser cassado o acórdão recorrido, bem como o decreto prisional, para revogar a prisão preventiva do paciente, determinando-se a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta.

Diante do exposto, concedo a ordem, nos termos da fundamentação acima.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e Felix Fischer.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.