Processual penal. Prisão em flagrante por crime hediondo. Admissibilidade. Necessidade de fundamentação concreta para o indeferimento.

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS N.º 15.449/SP

REL.: MIN. FÉLIX FISCHER

EMENTA

Processual penal. Recurso ordinário em habeas corpus. Art. 213, caput, C/C o art. 225, § 1.º, I, e § 2.º, ambos do CP. Prisão em flagrante. Flagrante impróprio ou quase-flagrante. Representação. Crime hediondo. Pedido de liberdade provisória. Ausência de fundamentação.

I – Não há que se falar em irregularidade da prisão em flagrante, se o paciente foi perseguido, logo após a prática de eventual delito de estupro, sendo preso em situação que o fez presumir como o possível autor da infração. É o que se chama de flagrante impróprio ou quase-flagrante (art. 302, III, CPP) (Precedentes).

II – Em se tratando de crime de ação penal pública condicionada, a representação, como condição de procedibilidade, não possui forma sacramental, prescindindo, assim, de maiores formalidades, bastando a manifestação inequívoca da vontade da vítima ou seu representante para que se apure a responsabilidade criminal do agente (Precedentes do STF e do STJ).

III – Consoante a mais recente orientação jurisprudencial, constitui-se o crime de estupro, ainda que perpetrado em sua forma simples e com violência presumida, em crime hediondo, submetendo-se o condenado por tal delito ao cumprimento de pena sob o regime integralmente fechado, a teor do disposto na Lei n.º 8.072/90 (Precedentes do STF e do STJ).

IV – Com a ressalva do entendimento pessoal do relator, prevalece na Quinta Turma desta Corte que o indeferimento do pedido de liberdade feito em favor de quem foi detido em flagrante deve ser, em regra, concretamente fundamentado. A qualificação do crime como hediondo não dispensa a exigência de fundamentação concreta para a denegação da liberdade provisória (Precedentes).

Recurso parcialmente provido, para conceder a liberdade provisória ao paciente, com a conseqüente expedição do alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso.

(STJ/DJU de 7/6/04, pág. 241)

Com a ressalva do entendimento pessoal do relator, ministro Félix Fischer, decidiu a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, pelo cabimento da liberdade provisória nos crimes hediondos, a qual somente pode ser negada se presentes estiverem os requisitos de necessidade da prisão preventiva, demonstrados através de despacho com fundamentação concreta e vinculada.

Outrossim, aponta o voto do relator uma aparente incongruência entre o inciso II do art. 2.º da Lei n.º 8.072/90, que encontra fundamento no art. 5.º, inc. XLIII, da Constituição Federal, o qual estabelece ser insusceptível de liberdade provisória aos acusados de praticarem crimes tidos por hediondos, com o próprio § 2.º da citada lei que prevê que “em caso de sentença condenatória,o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”.

Consta do voto do relator:

Logo, com a ressalva do entendimento pessoal do relator, a decisão que indefere a liberdade provisória deve obrigatoriamente demonstrar a ocorrência concreta dos requisitos da custódia cautelar. Neste sentido já se pronunciou o colendo Supremo Tribunal Federal:

“O Parágrafo único do art. 310 do Código de Processo Penal não impõe ao juiz, ao exarar de ofício, despacho fundamentado de toda e qualquer prisão que lhe seja comunicada, se entender configurado qualquer dos pressupostos da prisão preventiva. Todavia, cabe-lhe a obrigação de fundamentar a decisão sempre a liberdade provisória é postulada e denegada” (RTJ 105/131).

In casu, observa-se que o indeferimento do pedido de liberdade provisória não foi fundamentado em fatos concretos que ensejassem a manutenção da custódia preventiva.

Ademais, impende ressaltar que o único fato de ter o paciente sido preso e denunciado pela prática de crime hediondo não pode, por si só, dar ensejo à manutenção da medida constritiva, impedindo-se a concessão de liberdade provisória. O indeferimento do pedido de liberdade provisória exige fundamentação adequada, devendo exsurgir de fatos concretos, o que não ocorreu no r. decisum.

Aliás, este tem sido o entendimento manifestado por esta Corte Superior, conforme se depreende dos seguintes precedentes:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 12, CAPUT E 14, AMBOS DA LEI N.º 6.368/76. PRISÃO EM FLAGRANTE. FLAGRANTE PREPARADO. PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO.

I – “Não há falar em nulidade do flagrante, sob a alegação de ter sido preparado ou provocado, pois o crime tráfico de entorpecentes, de efeito permanente, gera situação ilícita que se prolonga com o tempo, consumando-se com a mera guarda ou depósito para fins de comércio, restando inaplicável o verbete da súmula 145/STF” (RHC 9839/SP, 6.ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, in DJU 28/8/2000).

II – O indeferimento do pedido de liberdade feito em favor de quem foi detido em flagrante deve ser, em regra, concretamente fundamentado. A qualificação do crime como hediondo não dispensa a exigência de fundamentação concreta para a denegação da liberdade provisória. (Precedentes).

Ordem deferida, para conceder a liberdade provisória ao paciente, com a conseqüente expedição do alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso.”

(HC 31618/SP, 5.ª Turma, DJU de 08/03/2004).

“PROCESSUAL PENAL – TRÁFICO DE ENTORPECENTES – INOCÊNCIA – EXAME DE PROVAS – APLICAÇÃO DO RITO PREVISTO NA LEI 10.409/02 – MATÉRIA NÃO EXAMINADA PELO TRIBUNAL A QUO – PRISÃO EM FLAGRANTE – PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA – AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO CONCRETA.

– A alegação genérica de inocência é inviável de ser examinada pela via estreita do writ, em razão da necessidade do amplo exame de provas.

– No que tange ao argumento de que não foi observado o rito previsto na Lei 10.409/02, que trata da defesa preliminar, verifico que tal matéria não foi objeto de análise pela Corte a quo, o que impede seu exame nesta oportunidade, sob pena de suprimir-se instância.

– Por fim, consoante entendimento desta Corte, mesmo em se tratando de tráfico de entorpecentes, a negativa de concessão de liberdade provisória deve ser fundamentada, não sendo suficiente a mera alegação de que se trata de crime equiparado a hediondo.

– Ordem concedida em parte apenas para que seja deferida à paciente a liberdade provisória, ressalvada a sua constrição por motivo superveniente”.

(HC 28012/RS, 5.ª Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJU de 15/12/2003).

“HABEAS CORPUS. CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE. LIBERDADE PROVISÓRIA. INDEFERIMENTO. AUSÊNCIA DE CONCRETA FUNDAMENTAÇÃO PARA A MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. ORDEM CONCEDIDA.

1. Ainda que o crime seja classificado como hediondo pela Lei n.º 8.072/1990, a simples alegação da natureza hedionda do crime cometido pelo agente do delito não é per si justificadora do deferimento do decreto de segregação cautelar, devendo, também, a autoridade judicial devidamente fundamentar e discorrer sobre os requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. Precedentes do STJ.

2. Habeas corpus concedido”.

(HC 26032/PR, 5.ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU de 12/05/2003).

“CRIMINAL. HC. HOMICÍDIO TENTADO. FLAGRANTE. INDEFERIMENTO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. AUSÊNCIA DE CONCRETA FUNDAMENTAÇÃO. NECESSIDADE DA MEDIDA NÃO-DEMONSTRADA. PRESENÇA DE CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. ORDEM CONCEDIDA.

I. Exige-se concreta motivação ao óbice à liberdade provisória de paciente primário e sem maus antecedentes, mesmo em sede de delitos hediondos, não bastando a simples alusão à vedação do art. 2.º, inc. II, da Lei n.º 8.072/90. Precedentes.

II. A presença de condições pessoais favoráveis, mesmo não sendo garantidoras de eventual direito à liberdade provisória, devem ser devidamente valoradas, quando não demonstrada a presença de requisitos que justifiquem a medida constritiva excepcional.

III. Deve ser concedida a liberdade provisória em favor de JOSÉ FERREIRA DA SILVA FILHO, com a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso, mediante condições a serem estabelecidas em 1.º grau de jurisdição, sem prejuízo de que o Julgador, com base em fundamentação concreta, venha a decretar nova custódia.

IV. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator.”

(HC 25181/RJ, 5.ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 05/05/2003).

Ademais, vislumbra-se em tal questão uma aparente incongruência entre o inciso II do art. 2.º da Lei n.º 8.072/90, que encontra fundamento no art. 5.º, inc. XLIII, da Constituição Federal, o qual estabelece ser insusceptível de liberdade provisória aos acusados de praticarem crimes tidos por hediondos, com o próprio § 2.º da citada lei que prevê que “em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”.

Ora, se mesmo diante de uma sentença condenatória, cuja certeza de cometimento do ilícito está devidamente comprovada, em face de toda uma instrução criminal, é permitido ao juiz conceder ao réu o direito de apelar em liberdade, desde que haja decisão fundamentada, com maior razão se deve exigir a fundamentação para a prisão cautelar, que ainda se reveste de indícios acerca da culpabilidade do réu.

Ante o exposto, dou parcial provimento ao recurso, a fim de que seja concedida liberdade provisória ao paciente, com a conseqüente expedição do alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Gilson Dipp, Jorge Scartezzini, Laurita Vaz e José Arnaldo da Fonseca.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.