“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS N.º 10.219

REL.: MIN. HAMILTON CARVALHIDO

EMENTA: 1. A Lei de Falências, na letra de seus artigos 106 e 109, parágrafo 2.º, afora gravar o inquérito judicial com o contraditório e o direito de defesa, podendo o falido contestar as argüições nele insertas e requerer o que entender de direito, faz também induvidoso que o Juízo Falimentar tem o poder de motivar o despacho de recebimento da denúncia.

2. Por conseqüência, em se suprimindo ao falido a resposta que lhe assegura a Lei de Quebras e se dispensando o Juízo Falimentar da Fundamentação legalmente devida ao recebimento da acusatória inicial, caracteriza-se a nulidade do feito, cuja declaração é imperativa quando é certo e demonstrado o prejuízo do imputado.

3. Recurso provido.” (STJ/DJU de 6/5/02, pág. 313)

Decidiu o Superior Tribunal de Justiça, através de sua sexta Turma, relator o ministro Hamilton Carvalhido, que o inquérito policial deve observar o contraditório e a ampla defesa, incumbindo ainda ao Juízo Falimentar o dever de fundamentar o despacho de recebimento da denúncia.

Consta do voto do relator:

O sr. ministro Hamilton Carvalhido (relator):

Senhor presidente, estes, os artigos da Lei de Falência tidos como violados:

“Art. 106. Nos 5 (cinco) das seguintes, poderá o falido contestar as argüições contidas nos autos do inquérito e requerer o que entender conveniente.”

“Art. 200. (…)

“Art. 109. (…)

(…)

§ 2.º Se receber a denúncia ou queixa, o juiz, em despacho fundamentado, determinará a remessa imediata dos autos ao juízo criminal competente para prosseguimento da ação nos termos da lei processual penal.”

(…)

§ 4.º A segunda via do relatório será juntada aos autos da falência, e com a primeira via e peças que o acompanhem, serão formados os autos do inquérito judicial, nos quais o falido, nas 48 (quarenta e oito) horas seguintes, poderá apresentar a contestação que tiver, decorrido esse prazo, os autos serão, imediatamente, feitos com vista ao representante do Ministério Público, que, no prazo de 3 (três) dias, pedirá sejam apensados ao processo de falência ou oferecerá denúncia contra o falido e demais responsáveis.”

Tem-se, assim, que a Lei de Falências, diversamente do decidido, grava o inquérito judicial com o contraditório, “podendo o falido contestar as argüições contidas nos autos do inquérito e requerer o que entender de direito.”

Ademais, faz-se também induvidoso que o Juízo Falimentar tem o dever de fundamentar o despacho de recebimento da denúncia, ordenando a remessa imediata dos autos ao juízo criminal competente.

Trata-se, a toda evidência, de repartição funcional de competência, assim justificada no magistério de Trajano de Miranda Valverde (in Comentários à Lei de Falência, volume II, pág. 225, 3.ª edição, Editora Forense, 1962):

“(…)

Não é sem boas razões que a lei atribui ao juiz da falência a competência para receber ou rejeitar a denúncia ou a queixa. Presume a lei, acertadamente, que o juiz da falência, diante dos fatos que ocorreram sob a sua imediata inspeção, é o mais indicado para, em face dos interesses em conflito, julgar do mérito da denúncia ou da queixa.”

Em se havendo suprimido ao falido a contestação que a lei lhe assegura e se dispensado o Juízo Falimentar da fundamentação legalmente devida, caracterizada está a nulidade do feito.

E não sendo exclusiva, nem preclusiva a competência penal atribuída ao Juízo Falimentar (Lei de Falências, artigo 113), trata-se de nulidade de natureza relativa, a exigir demonstração de prejuízo, como condição de sua declaração.

Pas de nullité sans grief.

À luz das informações do Juízo Falimentar e do teor do acórdão impugnado (fls. 98/97 e 114/117), tenho como demonstrado, quantum satis, o prejuízo resultante aos pacientes, verbis:

“(…)

Fundamenta a denúncia no disposto no parágrafo 4.º do artigo 200 da Lei 7.661/45 e nos seguintes fatos que sucintamente ora elencamos:

a) Simulação de capital social da empresa falida, mediante alteração de aumento de capitais de CR$ 11,80 (onze cruzeiros reais e oitenta centavos), para R$ 70.000.000,00 (setenta milhões de cruzeiros reais), visando maior crédito;

b) Desvio de bens que foram devolvidos à então concordatária por força de liminares concedidas em mandado de segurança contra decisões que concedeu a credores o arresto de mercadorias;

c) Constituição de `laranjas’ pelo ingresso na sociedade dos sócios Neusa dos Santos Moreno e o ora primeiro Paciente, que segundo a denúncia, ingressaram apenas no aspecto formal, procedendo a novo aumento no capital social, sem qualquer fundamento, que passou de R$ 25.460,00 (vinte e cinco mil quatrocentos e sessenta reais) para R$ 47.000,00 (quarenta e sete mil reais); e

d) Que os denunciados deixaram a escrituração dos livros obrigatórios atrasada e lacunosa, sobretudo com relação aos balanços encerrados, que impediu qualquer análise pormenorizada dos mesmos;

Relativamente ao item `a’ não observou o digno subscrito da Denúncia a peça de fls. – dos autos falimentares, onde bem se demonstrou que o capital social de CR$ 11,80 (já com alguns `zeros’ cortados por força de mudanças sucessívas de moeda pátria à época), equivalia a US$ 70.000,00 (setenta mil dólares), já, quanto ao novo valor de CRS 70.000.000,00 (setenta milhões de cruzeiros reais), equivalia a cerca de US$ 80.000,00 (oitenta mil dólares), donde se infere que aumento de capital não foi substancial para se concluir pela simulação. Ademais vale dizer que referido aumento de capital se deu em data de 11 de fevereiro de 1994, bem antes do pedido de concordata;

Quanto ao item `b’, desvio de mercadoria, cumpre dizer que os bens referidos na denúncia tratam-se de mercadoria arrestadas por alguns credores, muito embora a falida tenha conseguido liminares para a devolução, nenhuma mercadoria foi devolvida, (bastava que se extraíssem certidões dos autos dos Arrestos referidos, o que não ocorreu porque não foi dada oportunidade aos falidos para tanto!) equivocando-se a denúncia, injustificadamente, neste sentido, não obstante os inúmeros esforços envidados para o cumprimento das liminares, mediante a intimação via precatória dos fornecedores, e que foram desobedecidas pelos credores arrestantes.

No item `c’ faz referência a denúncia ao ingresso na sociedade dos sócios Neusa e o ora primeiro paciente, em substituição aos sócios Luís Antônio Flumiham e Núbia Costa Mafra Quiaroti, como se fossem “laranjas”, sem, contudo, apontar qualquer FATO a comprová-lo, tratando-se de afirmação totalmente gratuita. Já relativamente ao novo aumento de capital social de R$ 25.460,00 para R$ 47.000,00, igualmente, não é substancial para se concluir por simulação de capital social, e se deu de conformidade com a legislação específica, devendo ser considerada ainda, a atualização monetária e que se deu no curso da concordata, onde o crédito de falida já não mais existia.

Por derradeiro, o item `d’, onde, segundo a denuncia, a escrituração dos livros contábeis estaria atrasada e lacunosa, igualmente, não é verdadeira, é distorcida, tampouco se coaduna com o Laudo Pericial de fls. 157/158, onde é bem claro o perito quando diz: “Os livros estão escriturados conforme os preceitos legais,…” (Laudo pericial doc. anexo).” (fls. 06/08).

É que não se oportunizou aos pacientes a contestação assegurada no artigo 106 da Lei de Falência e se lançou o recebimento da denúncia, com os seguintes termos:

“Visto, etc.

1. Recebo a denúncia ofertada contra os réus. D.R. e A. como Processo Crime Falimentar.

2. Para o interrogatório designo o dia 15 de fevereiro de 2000, às 13h, citando-os e intimando-os.

3. Oficie-se como requerido pelo curador a fls. 179, itens `a’ e `b’, observando a zelosa serventia quando das respectivas intimações o teor constante do item `b’.

Intimem-se.”(fl. 70).

Por óbvio, nada importa, diga-se em remate, que o Juízo da 7.ª Vara Cível cumule a competência penal para ação penal, por isso que, entender em contrário, será transformar em letra morta lei em vigor.

Não é outro o entendimento que se recolhe na Súmula 564 do Supremo Tribunal Federal:

“A ausência de fundamentação do despacho de recebimento de denúncia por crime falimentar enseja nulidade processual, salvo se já houver sentença condenatória.”

Pelo exposto, dou provimento ao recurso para, anulando o recebimento da denúncia, determinar que se oportunize aos pacientes a resposta de que trata o artigo 106 da Lei de Falências.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Fontes de Alencar, Vicente Leal e Fernando Gonçalves.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.

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