Processual Penal. Júri. Concurso de Pessoas. Quesitação genérica. Cabimento.

“RECURSO ESPECIAL N.º 292.551 – RS

REL.: MIN. FERNANDO GONÇALVES

EMENTA – I. Se os jurados responderam negativamente ao quesito específico da existência do concurso de pessoas, afastaram, dessa forma, a co-autoria. Indispensável, portanto, a quesitação genérica, para que o júri possa se manifestar acerca da qualidade de partícipe do recorrido no crime.

2. Recurso conhecido (pela alínea “c”) e provido.”

(STJ/DJU de 24/6/02, pág. 351)

É sabida controvérsia existente em torno da quesitação genérica nos casos de concurso de agentes, quando negado o quesito específico.

À propósito vale trazer à colação a lição de Hermínio Marques Porto:

Assim, a indagação da co-autoria deve ficar contida em único quesito, com a adoção, se complexa a colaboração, da fórmula genérica da lei penal (“de qualquer modo” – art. 29 do CP), ou de referência à conduta colaboradora se de fácil descrição, não sendo permitida a apresentação da indagação em dois quesitos, um com a fórmula genérica da lei penal e outro com a descrição da conduta colaboradora, pois tal sistema, pela repetição da mesma circunstância, importa em gravame à defesa e em violação à ordenação do questionário, que deve ser equilibrada e racional.” (Júri, 9.ª ed., Malheiros Editores, pág. 203)

Como se vê da doutrina e da farta jurisprudência, a quesitação genérica (“o réu concorreu de qualquer forma para o crime”) somente pode ter lugar quando a complexidade dos fatos e das condutas impossibilita a quesitação específica, mas não quando cabe perfeitamente a quesitação específica. Nesta hipótese, negado o quesito, não pode ter lugar a quesitação genérica.

Outro, porém, é o entendimento da presente decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Fernando Gonçalves com o seguinte voto condutor:

O Exmo. sr. ministro Fernando Gonçalves (relator):

Assiste razão ao recorrente.

Com efeito, no caso dos autos, os jurados responderam negativamente ao quesito específico da co-autoria, entendendo que o réu não praticara atos de execução, contudo, não houve a quesitação genérica, que esclareceria se o réu concorreu, de outro modo, para a ocorrência do crime.

Assim sendo, é inegável o obstáculo à acusação, porquanto o júri poderia ter entendido pela resposta afirmativa do quesito suprimido, sem, no entanto, encontrar oportunidade para se manifestar.

A propósito, já decidido por esta Corte e pelo Supremo Tribunal Federal:

“HABEAS CORPUS. JÚRI. DENÚNCIA. PRONÚNCIA. CONGRUÊNCIA. ALTERAÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO DOS FATOS. POSSIBILIDADE. DUPLO HOMICÍDIO QUALIFICADO. CONCURSO DE PESSOAS. QUESITO GENÉRICO. NECESSIDADE. FIXAÇÃO DA PENA. NULIDADES. INOCORRÊNCIA.

Decisão de pronúncia que, considerando o fato de a denúncia ter mencionado o concurso de agentes, bem como as provas obtidas na instrução processual, altera a classificação legal dos fatos articulados na denúncia, consoante autoriza o § 4.º, do art. 408, do CPP. Inexistência de nulidade. Ausência de impugnação. Preclusão.

Tratando-se de co-autoria, faz-se imprescindível, sob pena de nulidade, a formulação de quesito atinente ao concurso genérico, quando negada a forma específica de participação no evento delituoso. Precedentes.

Inexistência de vícios na fixação da pena, que se deu com a observância dos ditames do art. 59, do CP.

Ordem denegada.: (HC 12508-RS, rel. min. José Arnaldo da Fonseca, DJU, 19.6.2000)

“Agravo Regimental Processual Penal. Júri. Quesitos.

1. Na co-autoria, negada a forma específica de participação, torna-se necessário a formulação do quesito sobre a forma genérica – CP, art. 29.

2. Recurso improvido.” (AGA 59005-RS, rel. min. Edson Vidigal, DJU, 23.10.95)

“Homicídio. Tribunal do Júri. Co-autoria. Quesitos.

Respondidos negativamente os quesitos sobre a autoria singular e a participação do réu nas lesões sofridas pela vítima, autorizado estava o presidente do Tribunal do Júri a formular um quesito genérico sobre a co-autoria nos termos em que a define o art. 25 do Código Penal e, bem assim, a condenar o réu, se respondida afirmativamente essa indagação.

Habeas corpus indeferido.”(HC 60642-RJ, rel. min. Soares Munoz, DJU, 25.3.83 – STF)

Ante o exposto, conheço do recurso (alínea “c”) e lhe dou provimento.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Hamilton Carvalhido, Paulo Gallotti, Fontes de Alencar e Vicente Leal.

Bem de família. Bem retornado ao patrimônio do devedor, após o reconhecimento de fraude à execução. Hipótese em que o devedor não pode beneficiar-se da Lei n.º 8.009/90.

“RECURSO ESPECIAL N.º 329.547/SP

REL.: MIN. CARLOS ALBERTO MENEZES

EMENTA: 1. Precedentes da corte assentam que aquele que age de má-fé, assim considerado o retorno do bem ao patrimônio após o reconhecimento da fraude de execução, não pode beneficiar-se da Lei n.º 8.009/90.

2. Recurso especial conhecido e provido.”

(STJ/DJU de 24/6/02, pág. 297)

Na presente decisão posta em destaque, da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Carlos Menezes Direito, adotou-se, mais uma vez, a lição de Clóvis Bevilacqua de que “não é ao lado do que anda de má-fé que se deve colocar o direito: sua função é proteger a atividade humana orientada pela moral ou, pelo menos, a ela não aposta” (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, ed. Rio, 1979).

Assim, o devedor que teve o bem retornado ao seu patrimônio, após o reconhecimento da fraude de execução, não pode receber os benefícios da Lei n.º 8.009/90, porque ninguém pode se beneficiar da própria torpeza.

Consta do voto do relator:

O exmo. sr. ministro Carlos Alberto Menezes Direito:

O recorrido ingressou com agravo de instrumento contra decisão que entendeu que o “simples retorno do imóvel ao executado como titular da propriedade do bem é insuficiente para que o juízo conclua que o imóvel é destinado à residência da entidade familiar”, daí indeferindo o pedido de nulidade da penhora. O Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo proveu o agravo. Para o tribunal de origem “muitos são os elementos de convicção dos autos acerca de ser o imóvel penhorado destinado à residência do executado-agravante, sendo o mais enfático deles a citação deste para a ação em tela no endereço daquele, sem contar que esse mesmo endereço foi várias vezes declinado em instrumento público como o local da residência dele, executado”. Entendeu que a “execução por pensão alimentícia que não inibe a constrição de bem de família é unicamente aquela decorrente das relações de parentesco, sem abranger a que decorra de ato ilícito, por não permitir a natureza daquele instituto semelhante equiparação”. Para o tribunal de origem, o executado “praticou atos atentatórios à dignidade da Justiça, e até a infração penal composta do ato de fraudar a execução. Todavia desta feita sua conduta foi pautada dentro da normalidade para as circunstâncias”. Os embargos de declaração foram rejeitados.

O especial relata que o recorrente ajuizou ação de indenização em decorrência de acidente de trânsito, causando-lhe graves danos; a ação foi julgada procedente para condenar o recorrido no pagamento das verbas referentes aos danos materiais sofridos, aos danos moral e estético e no pagamento de pensão na proporção de quatro salários mínimos por mês durante 48 meses, pelo ressarcimento dos danos físicos; iniciada a execução, identificou-se imóvel de propriedade do então réu, ora recorrido, tendo sido a penhora efetivada; foi reconhecida a fraude de execução diante da alienação indevida do bem, tornada, afinal, sem efeito e mantida a penhora sobre a meação do recorrido no imóvel; houve, então, a interposição de agravo de instrumento, decidindo o tribunal local que a “transferência do bem imóvel pelo devedor a terceiro, ainda que só formal e apenas para fraudar a execução, inibe aquele de argüir sua impenhorabilidade por se destinar a sua moradia, enquanto perdurar o registro imobiliário. Como salientado nos autos, o ato de transferência é válido, o que importa dizer que a titularidade do bem objeto desta é do adquirente, sendo apenas aquela ineficaz perante o credor do alienante. Portanto, somente após retornada a titularidade do bem ao devedor, por ato conjunto dos envolvidos ou de disposição da adquirente, é que poderá o agravante reivindicar a condição de bem de família do imóvel penhorado”; com base em tal decisão, o executado, ora recorrido, tomou as providências para que o bem voltasse para o seu domínio.

O especial, diante dos fatos narrados, afirma que o art. 3.º da Lei n.º 8.009/90 não faz distinção entre a pensão alimentícia em virtude das relações de parentesco, daquelas que decorrem de relações não vinculadas ao direito de família, mencionando o art. 1.539 do Código Civil como dispositivo protetor daquele que foi vítima de atos ilícitos. O art. 3.º, III, exclui a impenhorabilidade quando oponível “pelo credor de pensão alimentícia”. Por outro lado, o especial aponta que os atos atentatórios à dignidade da Justiça, assim a fraude de execução reconhecida, não autoriza que seja ele beneficiado por sua própria torpeza, invocando o art. 600, I, do Código de Processo Civil.

O art. 1.539 do Código Civil não foi prequestionado.

A meu sentir, tem razão o recorrente, no que se refere ao fato de estar o executado se beneficiando da própria torpeza. O despacho agravado, na realidade, está em consonância com diversos precedentes desta corte. A Quarta Turma firmou o mesmo entendimento, relator o senhor ministro Sávio de Figueiredo Teixeira (REsp n.º 119.208-SP, DJ de 2/2/98, anotando o voto condutor invocando outros precedentes, o que se segue:

“(…)

Por outro lado, torna-se necessária a análise da situação peculiar dos autos. O bem somente foi penhorado porque o recorrido logrou êxito em ação pauliana, por meio da qual ele retornou ao patrimônio dos recorrentes.

Ao votar no REsp 81.538-RS (DJ 3/6/96), no qual se discutia situação similar à presente, concluí que, em se tratando de penhora de bem que somente foi possível após reconhecimento da fraude contra credores, não era de se aplicar a Lei 8.009/90, porque seria prestigiar a má-fe do devedor. A turma, entretanto, por maioria, não abonou referida tese e declarou a impenhorabilidade do bem, tendo ficado vencido este relator. Desse REsp, colho do voto do ministro Ruy Rosado de Aguiar:

“Sr. presidente, peço vênia a V.Ex.” para acompanhar o voto do eminente ministro-relator. Compreendo e também me entusiasma a sustentação da defesa do credor que agiu de boa-fé, contra aquele que fraudou o pagamento da dívida. Acontece que a aceitação da tese implicará o reexame necessário da causa de todas as dívidas, cuja penhora incida sobre a morada da família. Então, a lei deveria ser lida assim: há impenhorabilidade desde que, no comportamento do devedor, não exista má-fé. Ocorre que essa condição não está na Lei n.º 8.009″.

Posteriormente, essa mesma Quarta Turma enfrentou novamente o tema, decidindo no mesmo sentido do precedente. O acórdão que materializou o julgamento do REsp 34.406/SP (DJ 5/8/96), comandado pelo ministro Cesar Asfor Rocha, ficou assim ementado:

“Processo Civil. Ação Pauliana. Fraude contra credores. Execução. Penhora. Bem de Família. Superveniência da Lei 8.009/90. Aplicação. Levantamento da constrição. Parcial provimento.

– É pacífico nesta corte o entendimento de que a Lei n.º 8.009/90 tem aplicação imediata e incide sobre as execuções pendentes, livrando da constrição judicial o bem de família, mesmo penhorado antes de sua vigência, mas ainda não alienado”.

Rogando venia, vou manter-me na divergência, em face da proteção assegurada pelo nosso direito à boa-fé. Como dizia Clóvis, nos seus comentários ao art. 547 do Código Civil, “não é ao lado do que anda de má-fé que se deve colocar o direito: sua função é proteger a atividade humana orientada pela moral ou, pelo menos, a ela não oposta” (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, ed. Rio, 1979).

De fato, presente a má-fé do devedor, não é possível oferecer-lhe a guarda da Lei n.º 8.009/90.

Destarte, eu conheço do especial e lhe dou provimento para restabelecer a decisão agravada.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Carlos Filho e Ari Pargendler.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.